Por Therezinha Hernandes.
Há muitas expressões no nosso
português que envolvem animais, cujas características se prestam a lições de
moral, seja por meio de fábulas, seja em provérbios ou em ditos populares.
Mas nem sempre se faz justiça aos
pobres bichos, especialmente quando se procura comparar sua natureza à dos
humanos – estes, sim, responsáveis por suas escolhas.
A cantiga infantil atira o pau no
gato, mas ele não morre (como se devesse morrer, coitado!). Se alguma coisa não
aconteceu como se esperava, deu zebra. Quando alguém tenta por várias vezes
empreender um negócio e este sempre fracassa, é porque tem caveira de burro
enterrada, ou alguém agiu como lobo em pele de cordeiro e sabotou o trabalho
alheio. Talvez tenha aparecido uma borboleta preta, de mau agouro, e ninguém
percebeu.
Pobres animais! Parece que a
maioria das expressões em que eles aparecem tem relação com insucesso, maus
presságios, muito azar – e quem não adora uma superstiçãozinha?
O primeiro grande injustiçado nas
crendices populares é o gato, especialmente se for preto. Em tempos primitivos,
a noite sempre foi um poço de temores para o ser humano. Daí a associação da
cor negra a tudo que é misterioso ou que possa trazer malefício. Na Idade
Média, acreditava-se que os animais de cor negra eram encarnações do demônio ou
seus emissários. Vem dessas superstições a crença de que o gato, principalmente
o preto, era o animal predileto das bruxas. Na época da Peste Negra, por conta
da ideia de que esses animais eram os causadores da doença, os infelizes
bichanos eram exterminados aos borbotões. Hoje se sabe que a falta de higiene
da época atraía ratos, cujas pulgas, picando as pessoas, transmitiam a peste
bubônica. Ou seja: os gatos, naturais predadores, teriam sido grandes
auxiliares dos seres humanos ao caçarem os verdadeiros disseminadores da
doença.
A suposição de que os gatos têm
sete ou nove vidas (e aqui não vamos comentar a numerologia) vem do equilíbrio
e da agilidade dos felinos, da ideia de que eles sempre caem sobre as quatro
patas e, presumivelmente, não se machucam numa queda. Por isso o gato não
morreu quando atiramos o pau nele na cantiga infantil. Talvez por isso, também,
tenha sido o animal escolhido por Schrödinger para seu experimento mental.
“Estar de gato amarrado” é hoje uma expressão desusada, mas que
designava alguém muito embriagado, “cercando frango” (alguém já tentou
perseguir um frango fujão?), por estar cambaleando, em plena carraspana.
Segundo o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo, em seu livro Locuções
Tradicionais no Brasil, a menção ao gato (no masculino) deve-se a um
equívoco. A expressão originária era “amarrar a gatA (feminino)” e tem origem
náutica, do tempo dos barcos a vela, porque “gata” era o nome da vela de maior
dimensão do mastro de ré. Como esse mastro também era chamado de mezena ou
mesena, a gata (vela) também era conhecida por esse nome.
Pois bem. Com a gata caçada ou ferrada (enrolada, amarrada), a nau
oscila mais nas ondas do mar. Não é difícil imaginar como os marinheiros andam
quando o navio está balançando desse jeito, e é por isso que o andar
cambaleante do bêbado foi associado à “gata (vela) amarrada”. Quando a gata
está solta, ela gera mais uma superfície de oposição ao vento, e assim o navio
retoma um pouco de equilíbrio.
O jogo do bicho, considerado ilegal mas muito popular no Brasil, rendeu
várias expressões pitorescas. Uma das mais conhecidas é “deu zebra”. A zebra
não está entre os vinte e cinco animais do jogo do bicho, e portanto “dar
zebra” representa um acontecimento inesperado ou improvável. Segundo o Guia
dos Curiosos – Língua Portuguesa, do jornalista Marcelo Duarte, a expressão
foi criada em 1964, durante o Campeonato Carioca de futebol. Consta que pouco
antes do início de uma partida entre o poderoso Vasco da Gama e a Portuguesa
carioca, time pequeno treinado por Gentil Cardoso, este técnico, confiante no
seu time, teria dito a frase “Acho que hoje vai dar zebra”. A Portuguesa ganhou
por um placar de 2 a 1, e assim a expressão se popularizou. Apesar do início
alvissareiro, hoje em dia ela designa algo que não deu certo, ainda que devido
a algum imprevisto.
Um dos bichos mais indesejados é a borboleta preta, pois a crendice
tradicional é de que ela porta maus presságios, trazendo o aviso de infelicidades
futuras, afastando a alegria, prenunciando a morte. Machado de Assis fixou
magistralmente a superstição em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Em grego, a palavra “psiquê” tanto pode ser “alma” como “borboleta”,
ante a alegoria da borboleta que, depois de muito rastejar como lagarta,
fecha-se num casulo em morte aparente, para depois ressurgir com asas, e assim
flutuar entre as flores na primavera. Assim a alma humana, depois de purificada
pelo sofrimento, pode finalmente encontrar a felicidade.
Isso serve para as borboletas diurnas e coloridas. Mas, como
representação do espírito, as borboletas escuras não gozam de boa reputação.
O pobre do burro também não tem melhor sorte no imaginário popular.
“Dar com os burros n’água” significa fracassar, representando algo por que
alguém muito se empenhou, mas sem sucesso. A expressão vem de um conto popular
que relata a competição entre dois tropeiros. Eles deveriam levar um fardo, de
sua escolha, até um ponto determinado, mas sem conhecer o caminho. Um escolheu um
fardo de sal; o outro, algodão. Acontece que havia um rio no meio do percurso.
Quando os dois competidores o atravessaram, a carga de sal se dissolveu, e a de
algodão se encharcou, ficando tão pesada que quase afogou o burro que a levava.
Este, para não morrer, corcoveou para se livrar da carga, que também acabou se
perdendo no rio. Nenhum dos tropeiros venceu o desafio, e “dar com os burros
n’água” passou a designar algo previsivelmente não vai dar certo.
Se os negócios vão mal apesar de todas as precauções, “tem caveira de
burro enterrada”. Pior ainda se a pessoa insiste, e continua “dando com os
burros n’água”, e a “caveira de burro enterrada” continua anunciando miséria. Foi
num jumento que a Virgem e o Menino Jesus fugiram para o Egito. Burros e jumentos
deveriam ter a gratidão das pessoas. Então, qual o motivo para uma caveira de
burro representar tamanha desgraça?
O burro é um símbolo de resistência: é teimoso e parece incansável.
Alimenta-se de qualquer coisa que encontre. Enfrenta fome, sede, excesso de
cargas. É um animal de trabalho pesado, e as pessoas não o consideram um bicho
de estimação. Ao contrário, dão-lhe chicotadas, e o animal trabalha sem
direitos e sem descanso até morrer – daí a expressão “trabalhar como um murro
de carga”. Desse modo, o burro e o jumento não têm como dar testemunho de
vitórias, sucessos e êxitos – apenas de trabalho pesado e infeliz, servindo sua
caveira para recordar uma existência desgraçada, sem alegrias, sem
compensações.
Burros e jumentos são animais inteligentes, de instinto acurado, não
tendo nenhum traço da estupidez com que os pintou o folclore.
Por sorte, hoje existem ativistas e organizações que
defendem os direitos dos animais; agora é crime atirar o pau no gato e judiar
de animais de carga.
0 comentários:
Postar um comentário