Por
Augusto Rodrigues.
Caminhando pelos corredores
da mal iluminada estação de metrô, o botânico paulistano Adalberto olhava com
uma mistura de asco e curiosidade para as paredes descascadas cobertas de
pichações coloridas, dos dois lados do caminho que levava à luz do dia lá fora.
A estação no bairro de
Kreuzberg da capital germânica era uma das várias pelas quais ele passava
durante suas andanças pela cidade naquele dia de abril ensolarado, mas bastante
fresco, em que o vento que soprava aqui e ali lhe enregelava a ponta do nariz e
as orelhas descobertas. Em meio às caminhadas, de vez em quando ele tomava o
metrô para evitar o cansaço ou o enregelamento excessivo do nariz e das orelhas
descobertas.
Quando subiu os degraus em
direção à rua e sentiu o calor do sol no rosto, algo peculiar lhe chamou a atenção: à sua frente ia um homem muito velho
e esguio, vestido estranhamente numa kurtka[1]
negra bastante desgastada, andando de maneira humilde e carregando no ombro uma
pequena trouxa. Nos pés tinha longas botas como Adalberto nunca havia visto em
toda a sua vida.
Perplexo com aquela visão, e
como não tinha nada específico a fazer naquela tarde, Adalberto decidiu seguir
o homem esquisito e descobrir aonde ia. Este saiu da estação e foi caminhando
pela Avenida Mehringdamm, e de súbito virou à direita na Blücherstrasse. Olhava
para um lado e para o outro com certa insegurança, como se estivesse perdido.
Para onde estaria indo? De súbito, e de um salto, virou para trás e começou a
voltar. Adalberto deixou que passasse por si, depois virou e continuou a
segui-lo. Quando o viu de frente, com o canto dos olhos, observou que trazia
uma longa barba grisalha e, sobre a kurtka,
tinha amarrado um estojo de botânico de séculos atrás. O homem voltou à Mehringdamm
e, quase trombando, por descuido, com um ciclista que vinha pela ciclovia,
tomou a calçada que corre ao longo dos velhos cemitérios, atirando olhares
curiosos para o comprido muro que os cerca.
O sol brilhava e projetava
a sombra de Adalberto na calçada, mas, quando observou o homem à frente com
mais cuidado, de repente se deu conta de que ele não projetava sombra alguma. Como isso é possível? Um homem sem sombra?!
Os outros poucos transeuntes dali não pareciam surpreender-se com aquela figura
anacronicamente trajada e que não projetava sombra alguma, uma vez que nem
sequer olhavam para ele quando passavam. Quando o muro foi interrompido por um
alto portão de ferro preto, o velho virou à esquerda e entrou. Adalberto o
seguiu. Como podia um homem sem sombra
ainda ser visto? Sem sombra ele seria transparente, desprovido de substância ––
seria algo abstrato!
Aquele
era um complexo de cemitérios que Adalberto não conhecia. Por que diabos o sujeito entrou ali? Para fazer o quê? Para visitar
alguma sepultura, é claro. Algum antepassado? Mas como um homem sem sombra
poderia ter antepassados? Antepassados também desprovidos de sombra? Ou teria
ele perdido a sombra em alguma altura da vida? Mas como alguém poderia perder
sua sombra?! E por que uma figura despojada de sombra apareceria para um
botânico brasileiro de viagem no velho continente?
Após entrar, o homem
encaminhou-se em direção à alameda número cinco, próxima ao muro, para onde
Adalberto o seguiu um pouco mais de longe. O silêncio reinava em torno dos
caminhos arborizados, onde todos aqueles anônimos descansavam em sua última
morada, como pensava Adalberto consigo, cada vez mais intrigado com aquela
figura como que saída de um conto de fadas remoto. Mas o homem sem sombra era real, estava ali, diante dos seus
olhos a certa distância, e não dava a impressão de se dar conta ou de se
incomodar com o fato de estar sendo seguido.
Ele andava, andava, e não encontrava o que
procurava. Adalberto seguia, seguia, e não entendia o que ele procurava, ou o que
fazia. O ancião perambulava aleatoriamente entre as sepulturas, examinando
agitado cada uma das lápides, que variavam de tamanho e imponência de acordo
com a estatura social ou a importância histórica do morto. Adalberto não se
cansava de segui-lo, e sua curiosidade aumentava a cada instante. O homem
estranho parou diante de uma lápide, não muito alta e relativamente distante
das outras no entorno. Fez uma ligeira reverência com a cabeça e continuou.
Adalberto o seguiu, estacando diante da mesma lápide e lendo o que ela dizia:
“E.T.W. Hoffmann”, datas de nascimento e morte, além de mais alguns escritos
indecifráveis.
Quando
ele levantou a cabeça, viu que o homem ia em direção à alameda de número
quatro, pegada ao muro, mas a insegurança do seu passo e seu comportamento
ainda denunciavam não saber precisamente onde estava. Mais um pouco adiante,
quando parecia dominado pela ansiedade, ele parou mais uma vez, com uma
expressão da mais profunda alegria e da mais autêntica comoção, e se ajoelhou
diante de uma sepultura. Ela não trazia uma lápide alta, mas certamente apenas
uma baixa, de granito ou de mármore, como julgava Adalberto do ponto de onde
observava a cena. O homem dava a impressão de estar em lágrimas, mas em
lágrimas de comoção alegre e não propriamente de tristeza ou luto.
Além
do botânico Adalberto e do senhor humilde sem sombra, não havia mais ninguém em
toda a área tranquila do cemitério naquele instante e, além do zunido do vento
da primavera que já soprava ao longo de todo o dia, não se ouvia nenhum ruído
sequer proveniente de parte alguma das redondezas. Nem mesmo o cantarolar dos
passarinhos que geralmente
sobrevoavam a região podia-se ouvir naquela tarde insólita. O homem ergueu-se
lentamente e, andando para trás sem se virar, afastou-se da sepultura, olhando
para os dizeres com uma profunda reverência. Ali permaneceu por mais alguns
instantes, enquanto secava as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Adalberto
era quem era agora dominado pela ansiedade para descobrir quem de fato atraíra
a visita de tal figura.
Quando saiu aquela tarde
para caminhar por uma de suas capitais europeias favoritas não suspeitava
deparar-se com tal coisa! Mas isso era bastante comum, pensava; durante viagens
ao exterior, era frequente nos depararmos com situações inesperadas e até mesmo
inusitadas em qualquer esquina. “Inusitado” era um bom adjetivo com que
qualificar aquela eventualidade, que ainda não estava esclarecida.
Adalberto
não podia mais conter-se. Como o velho permanecia imóvel diante da sepultura misteriosa
e não fazia menção de ir embora, foi indo em frente, pela alameda vizinha, com
o intuito de agora observá-lo por trás, pois assim talvez pudesse ver de quem
era o túmulo e talvez ainda ouvir algo que ele talvez pudesse estar falando
consigo mesmo ou com seu eternizado misterioso (embora, de longe, não tivesse
notado nenhum movimento de seus lábios). Quando tomou a alameda quatro e,
fingindo olhar outras lápides, se aproximou do homem pelas suas costas, notou
que ele agora projetava uma sombra! Impossível!
Como poderia ele, somente agora, deixar que o sol lhe projetasse uma sombra?
Adalberto assistia atônito àquilo que se dispunha diante dos seus olhos de
turista brasileiro. Deus do céu! O que era aquilo?
O homem, depois de se
abaixar e se curvar mais uma vez diante da sepultura, tocando com carinho uma
plaquinha preta cravada próxima ao chão de terra, começou a afastar-se,
dirigindo-se ao portão por onde havia entrado. Adalberto sentiu o sangue
inflamar-se em suas veias, alterando sua disposição geral. De um salto, e ainda
assim com discrição, foi direto à sepultura e descobriu do que se tratava: era
uma lápide de granito marrom levemente inclinada, fronteada por um alegrete de
folhas, hortênsias e narcisos amarelos. Em torno do alegrete e da lápide,
formando um retângulo, erguiam-se quatro pequenos postes de mais ou menos um
metro de altura, ligados entre si por correntes verdes em forma de “x”, que
isolavam toda a sepultura. Com dificuldade, Adalberto leu o que dizia a lápide:
“ADELBERT von CHAMISSO, GEB. D. 30 JANUAR 1781 GEST. D. 21 AUGUST 1838”.
Também: “ANTONIE von CHAMISSO, GEB. PIASTE GEB. D. 30 OCTOBER 1800 GEST. D. 21
MAI 1837”. Adelbert von Chamisso?! Não é
o autor daquela história maluca de um sujeito que vende sua sombra por alguma
razão? Como é mesmo o nome dele?... Peter Schlehmil! Peter Schlehmil?! Meu
Deus! “Ei! Espere aí!”, exclamou ele para a alameda deserta.
Adalberto saiu atrás do
ancião e o alcançou na rua, pouco além da entrada do cemitério, onde não mais
projetava sua sombra na calçada. Ele caminhava cabisbaixo, a passos lentos,
como que se arrastando pelo chão, enquanto segurava a trouxa sobre o ombro.
Adalberto engoliu em seco,
e olhou no relógio. Quando ergueu a cabeça, o homem sem sombra havia
desaparecido.
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