Por André J. Gomes.
Tem
palavra que é como cachorro de rua: vem com pulgas. Hoje apareceu uma
por aqui abanando o rabo, a língua de fora, o olhar pedinte, e eu deixei
entrar. Na verdade é uma expressão japonesa, dessas com significado
grandioso, definitivo. “Ikigai”. Alguma coisa como ‘a razão de ser’ de
cada um, motivo pelo qual você e eu nos levantamos todos os dias. Boa
frase. Esses japoneses têm cada uma!
Já
as pulgas que vieram junto são daqui mesmo, adestradas, veteranas dos
circos da vida. Saltaram certeiras para trás da minha orelha e agora
estão coçando. Estão coçando muito.
É
que eu andava distraído, sabe? E como em geral acontece quando a gente
se distrai, eu topei de cara com o óbvio doloroso. Seguia esquecido dos
meus reais motivos para acordar de manhã. Quando isso se dá, a gente
liga o piloto automático. E o piloto automático é burro que só ele.
Segue direto para o fim e o fim não é outro senão a bocarra da morte,
sem as tantas escalas aqui e ali que alguém há de chamar de vida.
Certo
é que todos seguimos sem volta para a morte e por isso viver é só o que
nos resta. Mas viver sem saber para quê é perder as escalas, praticar o
crime hediondo da estupidez.
Quem
esquece ou não sabe por que se levanta todos os dias se torna aos
poucos uma odiosa besta. Uma barata bêbada, uma criatura ridícula, vazia
e perdida falando pelos cotovelos, agredindo quem passa perto, batendo
em todas as portas à procura de só Deus sabe o quê.
Como
todos aqueles que não têm, abandonam ou desconhecem suas motivações
essenciais, quem existe neste mundo sem saber o que faz aqui sobrevive
sem desconfiar por quê. Passa a vida nadando em praias que não são suas,
engolindo humilhações, maus tratos, grosserias, preconceitos, pontapés,
julgamentos descabidos, deselegâncias, tomando toda sorte de água suja.
E a ironia é: mesmo ingerindo tanta coisa, pessoas assim continuam
vazias.
Faça
um teste. Olhe ao redor. Ouça as reclamações em curso. Já viu quanta
gente se queixando sem fim? Reclamar é “clamar de novo”. Pedir repetida e
infinitamente. Vê quanta gente pedindo de tudo outra vez? Pedem um novo
trabalho, novos amigos, amores, estados de espírito. Vivem de eternas
súplicas. É claro que podem e devem! A insatisfação é um impulso humano,
um direito conquistado. Rogar, requerer, reivindicar. A nós é permitido
clamar e reclamar à vontade. Mas não será um problema sério implorarmos
a vida inteira por algo que nós mesmos não sabemos o que é?
É
certo que há os insatisfeitos produtivos, aqueles que sabem o que
querem e não se contentam até encontrarem. Miram o horizonte e vão
buscá-lo. Vivem em movimento. Realizam. Palmas para eles! Mas há também
os insatisfeitos frustrados, inférteis, infecundos, entrevados em
queixas umbilicais. Esses enchem o saco.
Quem
reclama sem saber o que quer há de fazê-lo para sempre, até morrer
sentado num buraco que só afunda. Em situação bem pior que a do cachorro
perseguindo o próprio rabo, porque ao menos o cachorro sabe o que está
buscando. Ele quer morder o rabo e ponto. Porque a vida é dele e o rabo
coça como as pulgas perversas que me mordem atrás da orelha.
Estar
na vida sem saber por que pular da cama de manhã tem outro prejuízo
assombroso: faz de nós presas fáceis dos terríveis zumbis
sentimentaloides, essas mulas que saem por aí às cegas farejando amor
nas sombras, nas sobras e nos restos. “Amooor… amoorrr… eu quero um
amooooor, quero um amoooor assim e assado… quero porque quero…” feito
tontos completos. Sem opinião, sem a menor ideia do que anseiam da vida,
sem critérios, sem saber o que podem dar e o que desejam receber,
correndo em busca tão somente de não estar sós. Exigindo tudo sem nada
oferecer em troca. Arrastando-se na caçada de corações a devorar na
praça de alimentação de um shopping, mortos por dentro, desprovidos de
amor próprio, consumidos na busca de migalhas do afeto alheio.
Ignorar
nossos propósitos essenciais ou, pior, não tê-los nos torna ridículos
produtos manufaturados de uma vida pasteurizada. Figurantes mal pagos de
uma cena em que todos têm respostas prontas para tudo. Assim seguimos
anestesiados, distraídos, afastados do dever sublime de fazer perguntas e
do direito universal de questionar e descobrir por empenho pessoal e
sincero. Afinal, para quê perguntar tanto, né? Há inúmeras respostas
pré-fabricadas por aí. Mais fácil comprar uma delas no cartão em doze
vezes e fingir felicidade na hora da foto.
Abandonar
nosso direito a questionar também é viver sem saber por quê. E quem não
sabe o que está fazendo aqui perde o melhor da festa: a consciência
plena de seus sentidos, o gosto incrível de saber que estamos oferecendo
o melhor e recebendo o melhor em troca ou, no mínimo, estamos nos
preparando com honestidade para o inesperado que está por vir.
Quem
sabe o que quer pode seguir por onde bem entender porque há de sempre
retornar à sua intenção sagrada. A quem compreende a potência da vida e o
que fazer dela, andar por aí sem esperar nada além do privilégio de
acordar no dia seguinte não traz nenhum prejuízo e ainda lhe dá uma
vantagem imbatível: receber de bom grado o que vier para lhe fazer bem e
descartar todo o lixo que lhe tentarem impor. Porque quem encontra e
cultiva uma intenção sagrada se liberta da mendicância emocional.
Aprende a valorizar o que tem e a dizer “não, obrigado, isso não me
serve”.
Não
por nada, não porque possui um poder sobre-humano, mas só porque
reconhece aquilo e aqueles pelos quais se levanta todos os dias e dessa
intenção se alimenta e por ela trabalha, vai à luta ora com medo, ora
tomado de valentias, mas sempre repleto de uma íntima coragem de seguir
vivendo, ímpeto valioso construído de gratidão e amor. “Ikigai”.
Benditos japoneses, malditas pulgas. Como coçam, as danadas.
Quem se mete com quem não deve, se complica a toa.
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