domingo, 11 de maio de 2014

BRINCANDO COM A LÍNGUA: NÃO MALTRATE O PORTUGUÊS - O Non Sense: Jaguadarte

O Jabberwocky (Jaguadarte, em português), ilustrado por, John Tenniel, para a primeira edição inglesa de Alice através do espelho (Through the Looking-Glass, and What Alice Found There,1871).

Por Therezinha Hernandes.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.
(Jaguadarte, de Lewis Carroll, em uma das traduções em português)

Nossa! Que língua é essa? É de se imaginar que essa pergunta esteja martelando dentro da cabeça de muita gente.

Será que é o nosso bom e velho português? Sim, é a nossa língua.

Alguém poderá dizer que essas palavras estranhas não existem no nosso vocabulário – e tem razão. Não temos lesmolisas ou pintalouvas ou momirratos.

Porém, não é só o léxico que imprime as características de uma língua, mas também sua gramática.

Foi pensando nisso que o grande poeta Augusto de Campos recriou, com o nome de “Jaguadarte”, o poema “Jabberwocky” de Lewis Carroll, contido no livro “Alice no País do Espelho”.

Palavras novas surgem a cada momento, mas a base gramatical permanece quase intocada ao longo de séculos, pois ela reflete a lógica da língua.

Vamos explicar usando as nossas peças de Lego:

1) Podemos localizar no texto de abertura pecinhas bem pequenas – “era” (verbo), “e” (conjunção aditiva).

2) Outras já são peças duplas ou triplas – “as” (artigo feminino plural – “a” + “s”), “os” (artigo masculino plural – “o” + “s”), “nos” (contração da preposição “em” com o artigo masculino plural “os”). “A” e “o”, marcas de feminino e masculino respectivamente, combinam-se com o “s”, que é marca de plural, e podem se agregar a outras palavras para estabelecer-lhes o gênero (masculino e feminino) e o número (singular e plural), como em “lesmolisas”, “touvas” e “pintalouvas”, todas no feminino plural, e em “gramilvos”, “momirratos” e “grilvos”, todos no masculino plural.

3) A palavra “mimsicais” não tem marca de masculino nem de feminino, mas é fácil compará-la a algo conhecido: palavras terminadas em “l”, que fazem o plural em “is”, como “normal”, “normais”.
4) Encontramos verbos conhecidos, como “era”, “estavam” e “davam”, mas também reconhecemos como verbos “roldavam” e “relviam”, porque identificamos neles as terminações “avam” e “iam”, típicas de formas verbais.

A partir dessas peças menores e suas pequenas combinações, criamos elementos maiores, que podem se juntar a outros, e mais outros, surgindo assim estruturas cada vez mais complexas.
Vejamos como isso ocorre, para provar que “Jaguadarte” está em português:

A) “Era briluz” constitui uma estrutura bastante comum na nossa língua, comparável a “era cedo”, “era noite”, “era primavera”, etc.

B) “As lesmolisas touvas” é outra estrutura, que encontra paralelo, por exemplo, em “as professoras loucas”, “as mariposas verdes”, “os prados verdejantes” (trata-se da combinação “artigo + substantivo + adjetivo”).

C) “Os momirratos davam grilvos”, “as criancinhas davam gritos”, “os convidados davam presentes” são estruturas igualmente similares (para quem desejar saber, é a estrutura “sujeito + verbo + complemento do verbo”).

D) “Estavam mimsicais as pintalouvas” é uma oração em ordem inversa: “As pintalouvas estavam mimsicais”, resultando em “sujeito + verbo de ligação + predicativo do sujeito”.

E) “As lesmolisas touvas”, por seu turno, insere-se em outra estrutura maior: “As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos”, que podemos associar a “sujeito + verbos intransitivos + adjunto adverbial”, como em “As meninas elegantes dançavam e giravam no salão”.

Resumindo tudo que foi dito até agora, constatamos a existência de estruturas que se repetem. Mudam as palavras, ou, já que estamos falando de Lego, muda o formato da peça, mudam as cores, mas as estruturas são basicamente iguais.

Quando aprendemos a vê-las, fica mais fácil analisar o brinquedo, digo – o texto.

Na próxima semana começaremos a arrancar rodinhas e desvendaremos o mistério do “leite de cabra em pó”.

Therezinha Hernandes é advogada tributarista e especialista em Direitos da Personalidade. Formada também em Letras, pela USP, é professora de Língua Portuguesa para ensino médio e para cursos pré-vestibulares. Gosta de música - da folclórica à ópera, mas cantou em bandas de rock’n roll com muito feeling. Ministra oficina de leitura e interpretação de textos para professores da rede pública.





Leia também a coluna DR. MONSTRO, uma novela em episódios de arrepiar os cabelos.


9 comentários:

  1. Therezinha,
    Sem louvaminhas, o texto está uma beleza. Estou ansiosa pelo leite de cabra em pó, mas temo não conseguir resolver o mistério: serei suficientemente esperta? (Ai Jesuis!!!)
    Beijo
    Susana

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    1. Ah, Susana... Nada como uma escritora talentosa para criar palavras novas e charmosas! Gostei das suas louvaminhas, e em retribuição prometo desvendar na próxima crônica o mistério do leite de cabra em pó...rsrs...
      Beijão, querida!
      TT

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  2. Oi Therezinha!
    Grata surpresa ver que o Jabberwocky foi usado para demostrar o uso da gramatica como pecas do Lego, anteriormente mencionado.Divertido. Gostei! Muito bem executado. Parabens!

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    1. Oi, Maggie!!!

      Você, como anglófona, já conhecia o Jabberwocky e os jogos de palavras que Lewis Carroll criou, brincando com a língua inglesa mas respeitando sua gramática (entendendo-se gramática enquanto estrutura da língua). É preciso ser um profundo conhecedor, não só da língua, mas também de poesia, para recriar um poema impossível de ser simplesmente traduzido. A recriação do Jaguadarte foi um dos grandes trabalhos do excepcional Augusto de Campos.
      A proposta desta coluna é mostrar que é possível conhecer bem a gramática de forma prazerosa, literalmente brincando com a língua.

      Beijão, querida!!
      Obrigada por acompanhar a coluna!!

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  3. A lesmolisa touva que acabou de ler esse fantástico texto está com muito sono e achou tudo mimsical e sensacional!!

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    1. Oi, Regiane!!

      Ri muito com o seu comentário...rs... Você captou muito bem a intenção do texto (apesar do sono...rs...), e soube aplicá-lo de forma bem divertida.

      Borboleijos e ampleaços pra você!!

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  4. Demais! Trocar sílabas é comum e faço sempre, como saparinho, passato, mánica... mas essa junção de palavras é perfeita na difusão da ideia. Brincando com a estrutura da oração sem modificá-la.

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  5. Obrigada por acompanhar a coluna, Celso!

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  6. É... sou leitora (compulsiva) de João Guimarães Rosa e dessa fonte também gosto de beber... Maravilhoso!

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