Por Therezinha Hernandes.
Eleição é coisa séria. Muitas
vezes, porém, o eleitor se sente no fio da navalha ao se deparar com candidatos
que são santos do pau oco, que viram a casaca na hora “H”, que sabidamente vão
deixar o povo a ver navios... A voz do povo é a voz de Deus, mas, em tempos de
murici, cada um cuida de si.
Alguém pode me perguntar “que
bicho te mordeu?”. Respondo que nenhum; só aproveito o momento para mencionar
outras expressões populares da nossa rica língua portuguesa.
A expressão “no fio da navalha” é
bem conhecida, afinal são muitas as circunstâncias da vida em que nos sentimos
assim. Representa uma situação crucial, de angústia, um momento decisivo, em
que qualquer deslize pode ser fatal. Seu uso vem da tradução literal do nome de
um romance do escritor inglês William Somerset Maugham (The Razor’s Edge), em que o personagem principal hesita entre levar
uma vida convencional em Chicago, ou partir sem destino em busca de si mesmo. O
sentido figurado de andar sobre o fio de uma navalha, contudo, já existia nos
tempos de Homero, que o emprega na Ilíada.
“Santos do pau oco” também não
são raros no nosso mundo, mas a expressão surgiu em Minas Gerais, no século
XVIII, no auge da mineração. Para burlar os pesadíssimos impostos cobrados pela
Metrópole, os proprietários de minas e os grandes senhores de terras colocavam
parte de seus ganhos no interior de imagens ocas de santos, feitas de madeira.
Algumas delas, em geral as maiores, eram enviadas a parentes em outras
províncias, e mesmo a Portugal, como se fossem presentes. Para representar que
as aparências enganam, também se usam as expressões “por fora, bela viola; por
dentro, pão bolorento”, “quem vê cara não vê coração”, “não se julgue o livro
pela capa” e outras tantas. O povo é sábio.
“Virar a casaca” sempre pertenceu
ao âmbito da política, representando uma certa “versatilidade” em mudar de
partido e de opinião conforme a conveniência e os interesses de momento. Sua
origem remonta ao século XVIII, possivelmente como referência a Carlos Emanuel
III, duque de Saboia e rei da Sardenha. Para defender seu patrimônio
territorial, fez várias alianças, ora se voltando para o lado dos franceses,
ora para o dos espanhóis, segundo a utilidade e conforme qual deles o ameaçava.
Para isso, alternadamente usava as cores nacionais desses dois países em sua
casaca de gala. Virando a casaca o tempo todo, conseguiu ficar 43 anos no
poder. História antiga. Hoje, basta que a roupa tenha dupla face, ou que a face
seja dupla.
A “hora H” pertence ao “dia D”...
Hein? Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados planejaram uma operação para
invadirem a França, ocupada pelos alemães, desembarcando na Normandia. Para
manter o plano em sigilo absoluto, registraram apenas o dia com a letra “D” (Day, Dia), e a hora como “H” (Hour, Hora). Dia “D” e hora “H”
representam um momento decisivo. Para constar: o dia “D” foi 6 de junho de
1944, e a hora “H” foi às seis da manhã.
“Ficar a ver navios” significa
esperar por algo que não virá, que não acontecerá. Essa locução tem origem em
Portugal, e se reporta à lenda do rico Pedro Sem, mercador do Porto, que viu
seus navios de comércio naufragarem quando desafiou Deus a fazê-lo pobre.
Todavia, também pode ser uma referência aos Sebastianistas (que aguardam o
retorno do Rei Dom Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir em
1580), que iam ao Alto de Santa Catarina, em Lisboa, para esperar a vinda do
navio que traria “o Encoberto”.
Será o julgamento popular
manifestação do pensamento divino? Não, não é bem assim. A crença é quase tão
antiga quanto o mundo. Conta-se que em Farae, na Acádia, Norte do Peloponeso,
havia um templo dedicado a Hermes, deus grego do comércio e da comunicação,
pois era tido como o mensageiro dos outros deuses. Acreditava-se que ele
respondia as perguntas dos devotos da seguinte maneira: o consulente, depois de
se purificar, contava seu segredo ou sua dúvida bem no ouvido da estátua,
cobria suas próprias orelhas com as mãos e só as destampava na entrada do
templo, para prestar atenção aos transeuntes. As primeiras palavras que ouvisse
de um passante seriam a resposta de Hermes. Conta-se também que Santo Agostinho
(354-430), atravessando uma crise espiritual antes de se converter ao
cristianismo, foi passear num jardim, quando ouviu uma voz infantil cantando um
refrão que dizia: “Tolle, lege! Tolle,
lege!” (“Toma, lê! Toma, lê!”). Ele então leu a Epístola de São Paulo aos
Romanos e se converteu. Segundo as crenças populares de origem católica, há
vários santos que respondem aos apelos dos fiéis utilizando as falas de quem
passa na rua. Esse processo de invocar a manifestação sobrenatural por meio de
palavras ocasionais ditas por pessoas do povo determinou a origem da expressão
– Vox populi, vox Dei -, e não a
ideia de que o senso comum representa o pensamento divino.
Sei que algumas pessoas vão ficar
tristes agora, mas “murici” não é substantivo próprio, a despeito do nome de um
conhecido treinador de futebol. É o nome de uma árvore típica das regiões Norte
e Nordeste do Brasil (Byrsonima
crassifolia), também conhecida como muruci, murici-da-praia ou
murici-do-brejo. “Em tempo de murici, cada um cuida de si” foi uma frase que
teria sido dita pelo Coronel Nunes Tamarindo, em março de 1897, no final
catastrófico da coluna Moreira César, na campanha de Canudos, mencionada por
Euclides da Cunha em Os Sertões.
Segundo João Ribeiro, “murici” seria forma corrompida de morexi, morxi, murixi, mordexim, a cólera-morbo da Índia, e desse modo significaria que,
diante de uma epidemia letal, a solidariedade se anula.
Porém, Luís da Câmara Cascudo registra que essa expressão não existe fora do Brasil, e portanto refere-se à fruta popular da Bahia ao Maranhão. Segundo suas pesquisas, a cambica de murici é referida como alimento de pobre. Nesse sentido, a expressão corresponde ao adágio português “em tempo de figos não há amigos”. Assim, em tempo de colheita (de figos ou de muricis) e na falta de outros alimentos, cada um busca seu interesse e proveito, coletando a maior quantidade possível de frutos. De qualquer maneira, a expressão se refere a que, em tempos adversos, a solidariedade desaparece.
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