sexta-feira, 3 de julho de 2015

Canto para uma manhã azul

Um dia, lá pelas tantas de sua vida longa de ir e vir, a manhã decidiu sair de casa despida, leve, solta. Liberta. Completamente nua. Impulsiva e louca, dispensou as nuvens que a acompanham desde tanto e foi tomar sol sem nada. Nada além de sua infinita, fresca, pura e bela pele azul.

Deitada sobre a terra vestida de dor e intolerância, medo e preconceito, ódio e prepotência e burrice e falsidade, a manhã abriu os braços e suspirou generosa seu hálito vivo que tudo renova e aquece.

Soprando os vestidos das moças, bagunçando as calcinhas do varal, acarinhando o recado divino nos rostos das crianças, porque toda criança tem o rosto de Deus, a manhã se espreguiçava e alongava sem mais sobre nós como gata mansa, espaçosa, atrevida.

E toda gente que ali existia, saltada de suas camas para mais um dia, os meninos rumo à escola em seus bigodes de café com leite, os homens e as mulheres apressados para o serviço, os velhos passeando de braços com suas saudades, os trabalhadores noturnos seguindo para o descanso no fim da lida, os boêmios entornando os últimos goles em seu movimento de fuga honesta, todos eles paravam de olhos apertados em franco rubor. A manhã, em generosa liberdade, despertara coisas no lá dentro de toda gente.

Ela ficou assim cochilando, ensolarada e nua, sem vergonha e sem medo, respirando calma sobre um mundo perplexo. Em seu longo e eterno instante de beleza pura e simples. Então veio um anjo e em absoluto silêncio cobriu-lhe as partes de nuvens suaves, vestes macias aqui e ali, como um carinho divino, um cuidado manso de amor sem mais.

O sol lambeu-lhe a extensão de suas costas azuladas com calor e capricho, até o fim. A manhã foi se tornando tarde, depois tardinha, noite. Mas aí já era tarde. Ao despertar desnuda, a manhã ensolarou a vida. E toda gente se viu condenada a viver em estado de permanente amanhecer. 


André J. Gomes

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