sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

EVOÉ, MALCOM X! – Há 50 anos era assassinado Malcolm X

Por Jeosafá

Há 50 anos, em 21 de fevereiro de 1965, era assassinado um dos maiores líderes negros dos Estados Unidos e do Mundo. Em homenagem a ele e em desagravo, ofereço aos leitores um capítulo de meu romance-biografia O JOVEM MALCOLM X, a ser lançado em maio deste 2015, quando ele completaria exatos 90 anos de idade.


Foto: Reprodução, internet. 

Adeus à inocência

Já sabe como cheguei a Boston: terno verde, calças pelas canelas e um sobretudo cinturado que eu podia jurar já ter tirado da loja desbotado. Minha meia-irmã Ella, que me hospedou, morava na parte bacana de Boston, onde negros endinheirados esfregavam na cara de caipiras como eu suas belas conquistas pessoais. Foi instintiva minha aversão por essa parte da cidade.

Ella não queria que eu trabalhasse logo de cara. Sua expectativa era a de que eu me preparasse, com seu auxílio, para realizar um sonho difícil para os negros deste lindo país chamado “American way of life”: o de me tornar advogado. Com isso, eu seria um lindo protótipo de vencedor, não acha? Não seria mais um desses fracassados jogados por aí.

Porém, para isso, eu teria de me concentrar na região de Hill, frequentar os espaços de Roxbury, das avenidas Waumbeck e Humbold, me misturar com aqueles que, com vergonha de revelar suas verdadeiras profissões, se vestiam com mais arrogância do que seus próprios patrões – retorno a esse particular daqui a pouco. Pare de me cutucar, senão derrubo esse prato.

Ah! Tem um desses metidos a bacanas passando ali fora, olhe. Conheço, esse. É garoto de recados,

embora diga que é “expert” em comunicação. Mas não me cutuque mais... se eu quebrar um copo, você é quem vai pagar.

Porém, Hill, muito parecida com a região de Sugar Hill, aqui da Big Apple, me dava nos nervos. Ainda mais depois que, tendo perambulado por toda Boston, conheci os bairros negros, com seus becos e “gatos” parados nas esquinas, a exibir trajes amigo-da-onça cheios de bossa, que me deixaram totalmente envergonhado de minha roupa de matuto. “Ah, Red Little, você é um caipira”, eu me dizia, olhando os rapazes, com pouco mais da minha idade a andarem gingando em seus estonteantes sapatos coloridos, como se a vida fosse, a qualquer hora do dia, uma pista de dança.

Não teve por onde, só passei a dar as caras em Hill para dormir. Ella não se preocupava comigo, pois, afinal, queria que eu conhecesse como era grande o mundo fora de Lansing.

Ella me deu muitas dicas. Por exemplo, quando andávamos pelas ruas metidas a besta de Hill, ela dizia: “Está vendo aquele ali de paletó impecável e sapatos engraxados até refletirem o sol?”. “Sim”, respondia eu, “é o senhor fulano de tal, gerente de uma concessionária de automóveis”.


Então, Ella estourava de rir e dizia: “Little, como você é inocente. Isso é o código que ele usa para disfarçar sua verdadeira profissão: lavador de carros na mansão de não sei quem, lá no lado branco da cidade”.

Palavra, me senti um total idiota. “E aquela ali, toda emperiquitada e coisa e tal?”, me cutucava minha meia-irmã com seu cotovelo pontudo – como você acabou de fazer – e apontava com uns olhos enviesados muito engraçados.

“Sim, a dona do salão de beleza que foi tomar café na sua casa outro dia”, eu lhe respondia do alto da minha inocência. Será que pode rir com mais decência, Lory? Ora, eu tinha apenas 15 anos! Você deveria se apiedar e se envergonhar dessa sua atitude – quiá quiá quiá, você é uma figura, Lory!

Aí Ella emendou: “Menino, como pode acreditar em tudo que ouve? Se não converter sua inteligência em malícia, vai passar muita vergonha por aqui – e vai virar alvo de boas risadas”.

Como vê, Lory, Ella é, entre outras coisas, vidente.

Mas, não precisa socar o balcão enquanto ri. O Ed ou o Charlie vão jogá-lo na rua se continuar a se 

comportar como se estivesse num desses botecos pés-sujos que a ralé como nós frequenta.

Então Ella continuou: “Essa umazinha aí é ‘dona de salão de beleza’ só aqui no Harlem. Ela é faxineira na casa de Beltrana da Silva, lá para os lados do Bronx. E olha que a patroa dela também não nada em dinheiro, não, Red!”.

Meu mundo caiu nessa hora. Eu tinha essa dona como um exemplo acabado de negra bem-sucedida.

“Ella”, falei-lhe duramente, “então aqui só tem pobretão metido a rico por vergonha de ser pobre e preto?”.

“Aí você falou uma verdade, Little Red”, disse ela, invertendo meu nome por gozação, arregalando os olhos e estufando a boca numa careta hilária: “Ela acha que quem tem grana deixa de ser preto. Ser faxineira e limpar o banheiro dos brancos dá uma certa grana, que permite a ela  ter uma casa modesta, um casaco de vison falsificado e enganar almas puras e santas como a sua, seu mané!”, sussurrou Ella em meu ouvido, antes de explodir numa gargalhada sonora de grandes e lindos dentes brancos.

Depois que Ella se recompôs do acesso de riso, enfrentei a fera: “Ella, pode ir me passando esses códigos, que não quero mais passar vergonha, e muito menos ver os outros rindo da minha cara”.

“É pra já”, ela respondeu, assumindo ares de professora, ou irmã mais velha muito camarada: “Quando algum desses das bandas de cá se dirigir a você contando vantagens, fique sabendo, é pobre, pois os ricos não se dirigem a nós de maneira nenhuma, a não ser para dar ordens ou chamar a polícia. Se um desconhecido de ‘boa aparência’ não ordenou nada a você, nem chamou a polícia por causa de sua cor, é pobre disfarçado – seja preto, seja branco”.

“Tou entendendo, ‘Big’ Ella, pode continuar...” – ironizei-a, que nisso também não fico atrás de ninguém, é só me cutucarem para ver.

Ella prosseguiu sua aula de malícia: “Se uma moça lhe disser que é administradora de salão de cabeleireiros ‘chic’, fique sabendo, esse é o código que ela usa para ‘manicure’. Mas não faça a bobagem ou a indelicadeza de devolver-lhe na cara o ‘manicure’ – seja gentil com todos, principalmente com as moças de nossa cor, que são oprimidas por tudo quanto pesa sobre os negros e ainda muitas vezes por seus pais ou namorados machões”.

Senti naquele momento que Ella falava de si mesma. Minha meia-irmã retomou: “A ‘dona’ do ‘haute 
coiffure’ sabe que está pregando uma mentira – e espera que você também saiba e tenha a delicadeza de não zombar”.

“E se um cara disser que é, por exemplo, dono de loja de móveis?”. “Então ele é, na melhor das hipóteses, marceneiro”.

Devolvi a Ella: “Por essa lógica, se um fulano disser que tem um posto de gasolina, então, é frentista!”.

“Viu?”, Ella sorriu magnanimamente. “Não é difícil traduzir esse código, não é mesmo?”.

Fui-me escolando nessas conversões de código, de tal maneira que, depois de algum tempo, andando pela rua, ia competindo com Ella: “Esse é carpinteiro.” – “Isso!”; “Aquela é babá.” – “Isso!”; “Lá na frente vai um mensageiro.” – “Isso!”; “Atravessando a rua, vai uma balconista.” –  “Isso! Isso! Isso!”.

Depois de um mês, já tinha toda uma tabela de conversão de profissões na cabeça. Não havia mais amigos de Ella que eu não submetesse a meu raio X, para escrutinar seu verdadeiro “status social”.

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