Por André J. Gomes.
Encontrei há pouquinho minha avó, Dona Irene, mãe de meu pai, os braços muito abertos e os cabelos muito brancos, e ela me deu um presente raro: uma fotografia dos avós maternos dela. Meus trisavós! Ele se chamava Raimundo de Campos Rosa e ela, Júlia de Campos Rosa. Juntos, tinham um pequeno negócio doméstico. Eram “doceiros”.
Minha avó me contou, separando lembranças em sua memória valiosa de noventa e dois anos, que Dona Júlia cozinhava e Seu Raimundo vendia os doces na Estação Ferroviária de Araraquara a quem chegava e a quem partia. Eram doces caseiros de verdade. Na primeira metade do século passado, todo dia antes do sol apontar e da primeira locomotiva apitar furiosa, meu trisavô enchia um pequeno baú e o levava nas costas, de bicicleta, para a estação de trem.
O
cardápio decerto não tinha nada de sofisticado. Deviam ser quindins
tranquilos, simpáticas cocadas, humildes doces de abóbora, suspiros
discretos, bananadas e outras coisas simples de açúcar e sonho que hoje
quase não existem mais. Seu Raimundo e Dona Júlia fizeram a vida assim,
fazendo doce. Também fizeram filhos e filhas. Uma delas, Benedita Rosa,
deu à luz minha avó, Irene, que pariu meu pai e que depois ajudou a me
trazer a este mundo grande e quase sempre doce, como o ganha-pão da
família de Seu Raimundo e Dona Júlia.
Uma tarde, Seu Raimundo passou mal enquanto esperava o último trem. Um grupo de solidários desconhecidos o levou de volta para casa, os doces intocados, e pouco tempo depois ele morreu ali, sob o amor e os cuidados de Dona Julia, dos filhos e das filhas e dos netos.
Eu não conheci Seu Raimundo e Dona Júlia. Mas passei a infância inteira ao lado de sua filha Benedita Rosa, minha bisavó. Foi a minha primeira amiga na vida. Hoje é uma lembrança boa que me visita sem mais o quê.
O
certo é que a mim faz bem imaginar meus trisavós na lida, Dona Júlia no
calor do fogão de lenha, Seu Raimundo à espera dos viajantes, e as
tantas vezes em que juntos fizeram mais doce o dia de toda gente,
amaciando a dureza e o amargor da despedida, amansando a fome de afeto
da chegada. Salpicando o mundo de amor e açúcar.
Não tenho deles nada além de uma fotografia que ganhei de minha avó, uma história fantasiada nas noites sem sono e esse gosto pelos doces que me socorrem quando a solidão amarga.
Não tenho deles nada além de uma fotografia que ganhei de minha avó, uma história fantasiada nas noites sem sono e esse gosto pelos doces que me socorrem quando a solidão amarga.
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