Precisa, sim. A gente precisa fazer alguma coisa. Passou da hora. O negócio ficou estranho demais. Já faz tempo que anda assim, é verdade, mas a gente que vive desse jeito, feito cavalo na corrida, uma hora cansa. Esgota para além do desgaste óbvio de quem sai de casa e dá o sangue no trabalho. Chateia mais que tudo essa coisa de viver esquivando, saltando acima de um milhão de rasteiras, como criança que pula corda no meio da rua, à espera de correr para a calçada quando vem o próximo carro nervoso querendo passar, pronto a atropelar quem estiver à frente.
Aborrece, enfastia seguir tantos manuais de instrução. “Viva assim”, “faça assado”. Duro obedecer a tantas ordens e preceitos e conselhos e receitas e palpites. Impossível responder a tanto ataque, tanta expectativa. Tanta instabilidade. “De manhã eu te amo, à tarde eu quero que você morra!”
A gente precisa fazer alguma coisa. Mas fazer assim, sem mais, pela mera expressão da vontade de que as coisas melhorem. Devagar. Fazer pela esperança de construir, vencer pelo empenho. Fazer sem esperar que o outro retribua. Fazer sem expectativa, sem esperar em troca. Fazer pelo outro o que você gostaria de fazer de novo amanhã. E depois de amanhã. E depois.
Olha quanta gente se engalfinhando e agredindo! Olha aquele sujeito ressentido da alegria do cachorro da vizinha que brinca lá embaixo com as crianças. Ele não se conforma de todos serem felizes, os meninos, as mães, os cachorros. O sujeito esbraveja em silêncio, resmunga “como assim? Esse cachorro é mais feliz do que eu? No meu condomínio? E então eu pago as taxas de manutenção das áreas comuns para um cachorro se divertir no meu lugar? NÃO aceito!”
E ele faz uma reclamação formal à síndica, a síndica proíbe os cachorros de brincar na pracinha do prédio com as crianças, as crianças e os cachorros brincam no apartamento mesmo e sujam o tapete da mãe, a mãe fica nervosa, grita e manda todo mundo brincar na rua que ela tem mais o que fazer e não vence limpar a casa. E assim vamos nos distanciando devagar.
É tempo da gente fazer alguma coisa. Não essas reclamações covardes e ressentidas aos síndicos. A gente precisa fazer alguma coisa que preste. Vê aquela senhora ali? Está ardendo de raiva porque desejou feliz aniversário a alguém que depois esqueceu de fazer o mesmo por ela. Sabe o que ela fez? Prometeu nunca mais desejar feliz aniversário a NINGUÉM!
Quanta gente afetada, autorreferente e apaixonada pelo som da própria voz! Tão convencida de sua perfeição e dedicada a exaltar as próprias façanhas que ninguém mais no mundo presta!
Não dá. A gente precisa fazer alguma coisa. Essa mania de achar que o mundo gira em torno de nossas vontades fez de nós um bando de cegos tateando os corredores pegajosos e fedorentos de nossos egos.
Está ficando cada vez pior. E sabe por quê? Porque a gente prefere achar que o problema não é nosso. A gente tem de fazer alguma coisa agora. Não precisa ser passeata, protesto, abaixo-assinado, manifestação. Começa com um gesto mais simples. Uma ação solitária que provoque um milhão de respostas solidárias: vamos fazer uma gentileza!
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