segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Brincando com a língua - Arará cairota – se você encontrar uma, fuja!

As palavras sempre me apaixonaram, primeiro pela sonoridade, depois pelo desenho (sim, pelo desenho delas, quando eu ainda não sabia ler; até hoje sou fascinada pelos ideogramas de línguas orientais pelo mesmo motivo), e finalmente pelos significados misteriosos.

Essa sequência – sonoridade, forma, significado – representa as fases do aprendizado da língua.

Quando inicio um curso, sempre pergunto aos alunos: “O que uma criança aprende primeiro? A falar ou a escrever?”. A resposta é: nenhuma das duas. As crianças ouvem; só depois tentam reproduzir os sons.

Eu amava as vozes que falavam comigo. Talvez isso explique o amor que desenvolvi pelas palavras. Minha mãe cantava o dia inteiro; meu pai, às vezes. Lembro-me bem, por isso, da letra de “Serra da Boa Esperança”, cujas rimas sempre me encantaram: “Ó, minha serra, eis a hora/ do adeus... Vou-me embora./ Deixo a luz do olhar no teu luar – adeus!”. Não sei como, mas sempre entendi a metáfora de que os olhos do poeta não sairiam do rosto dele para ficar na terra que ele adorava, e sim que ele levaria a imagem na lembrança.


Creio mesmo ter sido esse também o motivo que me levou a gostar de poesia, com ou sem rima. Porém, há outro: meu pai adorava poesia e vivia recitando o soneto “Duas Almas”, de Alceu Wamosy:

Ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada, 
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho: 
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho, 
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada, 
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho, 
Entra, ao menos até que as curvas do caminho 
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa, 
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua, 
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha. 
Há de ficar comigo uma saudade tua... 
Hás de levar contigo uma saudade minha...


E foi então que percebi: palavras podem ter significados misteriosos. “Lividamente”, “alcova”, “tepidez”, “nômade” – o que seria tudo isso? Por incrível que possa parecer, eu sabia o que era “esplendor”, pois no meu tempo de criança os adultos ainda diziam que algo muito bom era “esplêndido”, “fabuloso”, “encantador”.

Crianças têm uma curiosidade natural que faz delas verdadeiras esponjinhas: absorvem tudo que veem, que ouvem, e assim vão aprendendo.
Depois, quando fui para a escola, tive muita sorte. Talvez fosse minha curiosidade, ou então um pendor inato para gostar das pessoas sem maiores delongas, mas o fato é que eu adorava minhas professoras. Talvez elas se fizessem amar, por serem elas mesmas amorosas. Não sei bem qual a razão, mas acho sinceramente que tive muita sorte, pois logo uma dessas professoras disse a um dos alunos uma frase que me marcou para o resto da vida: “Como você me diz que não entende português? Você fala português há onze anos! Pense no que você fala, meu bem, porque já aprendeu a usar a língua. Agora só estamos dando nome aos bois...”.

Ela estava coberta de razão. Nós começamos ouvindo os sons, passamos a repeti-los, assimilamos as estruturas, e só no fim aprendemos os nomes das relações que se estabelecem. É uma gramática internalizada, um conjunto de regras que o falante domina (Possenti, 1996), ainda que não lhes saiba os nomes ou as fórmulas.

Mas, e os significados? E as palavras “difíceis”? Bem, isso se aprende. Pode não ser imprescindível para a eficiência da comunicação, não prova a inteligência de ninguém, mas o desejo de saber mais, de aprender coisas diferentes, é algo que não se deve desprezar.

Aprendi palavras “difíceis” por diversão. No início, era um jeito que meu pai encontrava de me fazer ficar quieta: “Não apoquente seu irmão!”. Ou, então, para salvar minha mãe da minha teimosia, ele me sugeria conjugar o verbo “desinquevinquevacar” (não, esse verbo não existe, mas garanto que qualquer criança abandonaria a travessura em que estivesse metida para desinquevinquevacar, seja lá o que for isso). Meus irmãos, vendo que a tática do meu pai funcionava, passaram a usá-la também. Eu parava na hora o que estivesse fazendo e perguntava: “O que é isso?”. Algo me diz que não fui uma criança muito pacata.

Porém, como tudo virava brincadeira – e qual criança não gosta de brincadeiras?-, acabei me apaixonando pelas palavras. Às vezes amamos pessoas difíceis, problemáticas. Por que não dirigir esse mesmo amor às palavras? Era assim que eu pensava. Até hoje é assim.

Bem mais tarde, quando comecei a lecionar, usei a mesma estratégia para apaziguar turmas agitadas demais: “Não estou falando nada perfunctório”. Ah, que ninguém subestime o poder que uma palavra nova tem de criar um silêncio sepulcral!

O gosto pelas palavras me tornou uma leitora voraz: nem rótulos nem bulas de remédio me escapam. Foi assim que descobri escritores tão ou mais apaixonados que eu. Da mesma maneira, percebi que um defenestrador contumaz pode se esconder na alma de Luís Fernando Veríssimo (leia aqui), que Rubem Braga poderia ficar ensandecido com uma arará, mas poderia ser salvo por um cairota, e também admirar-se com a pulcritude de uma dama (leia aqui), e que Manuel Bandeira e eu temos algo em comum: não sossegamos enquanto nossa curiosidade não for saciada (mas as semelhanças param por aí).

Luís Fernando Veríssimo, na crônica “Defenestração”, brinca com a sonoridade das palavras em relação ao seu significado. Rubem Braga, com muita propriedade, mas sem perder a leveza característica da crônica, se insurge contra questões de provas (no caso, de um concurso público) que exigem do candidato mais do que saber usar a língua, em “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”. Manuel Bandeira, por seu turno, leu a crônica de Rubem Braga e, movido pela curiosidade, pôs fim ao enigma (descubra aqui) na crônica “A fêmea do cupim”.

Certamente é inconcebível exigir de um estudante ou candidato, numa prova, que saiba essas filigranas da língua. Isso não lhe mede a capacidade de expressão, nem muito menos a inteligência. No entanto, esses três autores são grandes conhecedores da língua, são amantes das palavras como eu, e fazem com seus leitores o que meu pai fazia na minha infância: atiçam-lhes a curiosidade de forma divertida e, com isso, criam neles a preciosa vontade de aprender coisas diferentes.

O nome da fêmea alada do cupim pode interessar apenas para o cupim; quem nasce no Cairo inegavelmente é estrangeiro; mas, da minha parte, se encontrar uma arará cairota, fujo correndo, pois ela deve ser gigante.

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