As palavras sempre me
apaixonaram, primeiro pela sonoridade, depois pelo desenho (sim, pelo desenho
delas, quando eu ainda não sabia ler; até hoje sou fascinada pelos ideogramas
de línguas orientais pelo mesmo motivo), e finalmente pelos significados
misteriosos.
Essa sequência – sonoridade,
forma, significado – representa as fases do aprendizado da língua.
Quando inicio um curso, sempre
pergunto aos alunos: “O que uma criança aprende primeiro? A falar ou a
escrever?”. A resposta é: nenhuma das duas. As crianças ouvem; só depois tentam
reproduzir os sons.
Eu amava as vozes que falavam
comigo. Talvez isso explique o amor que desenvolvi pelas palavras. Minha mãe
cantava o dia inteiro; meu pai, às vezes. Lembro-me bem, por isso, da letra de
“Serra da Boa Esperança”,
cujas rimas sempre me encantaram: “Ó, minha serra, eis a hora/ do adeus... Vou-me embora./
Deixo a luz do olhar no teu luar – adeus!”. Não sei como, mas
sempre entendi a metáfora de que os olhos do poeta não sairiam do rosto dele
para ficar na terra que ele adorava, e sim que ele levaria a imagem na
lembrança.
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...
A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho,
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.
E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!
Já não serei tão só, nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...”
E foi então que percebi: palavras
podem ter significados misteriosos. “Lividamente”, “alcova”, “tepidez”,
“nômade” – o que seria tudo isso? Por incrível que possa parecer, eu sabia o
que era “esplendor”, pois no meu tempo de criança os adultos ainda diziam que
algo muito bom era “esplêndido”, “fabuloso”, “encantador”.
Crianças têm uma curiosidade
natural que faz delas verdadeiras esponjinhas: absorvem tudo que veem, que
ouvem, e assim vão aprendendo.
Depois, quando fui para a escola,
tive muita sorte. Talvez fosse minha curiosidade, ou então um pendor inato para
gostar das pessoas sem maiores delongas, mas o fato é que eu adorava minhas
professoras. Talvez elas se fizessem amar, por serem elas mesmas amorosas. Não
sei bem qual a razão, mas acho sinceramente que tive muita sorte, pois logo uma
dessas professoras disse a um dos alunos uma frase que me marcou para o resto
da vida: “Como você me diz que não entende português? Você fala português há
onze anos! Pense no que você fala, meu bem, porque já aprendeu a usar a língua.
Agora só estamos dando nome aos bois...”.
Ela estava coberta de razão. Nós
começamos ouvindo os sons, passamos a repeti-los, assimilamos as estruturas, e
só no fim aprendemos os nomes das relações que se estabelecem. É uma gramática
internalizada, um conjunto de regras que o falante domina (Possenti, 1996),
ainda que não lhes saiba os nomes ou as fórmulas.
Mas, e os significados? E as
palavras “difíceis”? Bem, isso se aprende. Pode não ser imprescindível para a
eficiência da comunicação, não prova a inteligência de ninguém, mas o desejo de
saber mais, de aprender coisas diferentes, é algo que não se deve desprezar.
Aprendi palavras “difíceis” por
diversão. No início, era um jeito que meu pai encontrava de me fazer ficar
quieta: “Não apoquente seu irmão!”.
Ou, então, para salvar minha mãe da minha teimosia, ele me sugeria conjugar o
verbo “desinquevinquevacar” (não, esse verbo não existe, mas garanto que
qualquer criança abandonaria a travessura em que estivesse metida para
desinquevinquevacar, seja lá o que for isso). Meus irmãos, vendo que a tática
do meu pai funcionava, passaram a usá-la também. Eu parava na hora o que
estivesse fazendo e perguntava: “O que é isso?”. Algo me diz que não fui uma
criança muito pacata.
Porém, como tudo virava
brincadeira – e qual criança não gosta de brincadeiras?-, acabei me apaixonando
pelas palavras. Às vezes amamos pessoas difíceis, problemáticas. Por que não
dirigir esse mesmo amor às palavras? Era assim que eu pensava. Até hoje é
assim.
Bem mais tarde, quando comecei a
lecionar, usei a mesma estratégia para apaziguar turmas agitadas demais: “Não
estou falando nada perfunctório”.
Ah, que ninguém subestime o poder que uma palavra nova tem de criar um silêncio
sepulcral!
O gosto pelas palavras me tornou
uma leitora voraz: nem rótulos nem bulas de remédio me escapam. Foi assim que
descobri escritores tão ou mais apaixonados que eu. Da mesma maneira, percebi
que um defenestrador contumaz pode se esconder na alma de Luís Fernando
Veríssimo (leia aqui),
que Rubem Braga poderia ficar ensandecido com uma arará, mas poderia ser salvo
por um cairota, e também admirar-se com a pulcritude de uma dama (leia aqui),
e que Manuel Bandeira e eu temos algo em comum: não sossegamos enquanto nossa
curiosidade não for saciada (mas as semelhanças param por aí).
Luís Fernando Veríssimo, na
crônica “Defenestração”, brinca com a sonoridade das palavras em relação ao seu
significado. Rubem Braga, com muita propriedade, mas sem perder a leveza
característica da crônica, se insurge contra questões de provas (no caso, de um
concurso público) que exigem do candidato mais do que saber usar a língua, em
“Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”. Manuel Bandeira, por seu turno, leu a
crônica de Rubem Braga e, movido pela curiosidade, pôs fim ao enigma (descubra
aqui)
na crônica “A fêmea do cupim”.
Certamente é inconcebível exigir
de um estudante ou candidato, numa prova, que saiba essas filigranas da língua.
Isso não lhe mede a capacidade de expressão, nem muito menos a inteligência. No
entanto, esses três autores são grandes conhecedores da língua, são amantes das
palavras como eu, e fazem com seus leitores o que meu pai fazia na minha
infância: atiçam-lhes a curiosidade de forma divertida e, com isso, criam neles
a preciosa vontade de aprender coisas diferentes.
O nome da fêmea alada do cupim
pode interessar apenas para o cupim; quem nasce no Cairo inegavelmente é
estrangeiro; mas, da minha parte, se encontrar uma arará cairota, fujo
correndo, pois ela deve ser gigante.
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