segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Brincando com a língua - Das injustiças contra o gato e outros animais

Por Therezinha Hernandes.

Há muitas expressões no nosso português que envolvem animais, cujas características se prestam a lições de moral, seja por meio de fábulas, seja em provérbios ou em ditos populares.

Mas nem sempre se faz justiça aos pobres bichos, especialmente quando se procura comparar sua natureza à dos humanos – estes, sim, responsáveis por suas escolhas.

A cantiga infantil atira o pau no gato, mas ele não morre (como se devesse morrer, coitado!). Se alguma coisa não aconteceu como se esperava, deu zebra. Quando alguém tenta por várias vezes empreender um negócio e este sempre fracassa, é porque tem caveira de burro enterrada, ou alguém agiu como lobo em pele de cordeiro e sabotou o trabalho alheio. Talvez tenha aparecido uma borboleta preta, de mau agouro, e ninguém percebeu.

Pobres animais! Parece que a maioria das expressões em que eles aparecem tem relação com insucesso, maus presságios, muito azar – e quem não adora uma superstiçãozinha?

O primeiro grande injustiçado nas crendices populares é o gato, especialmente se for preto. Em tempos primitivos, a noite sempre foi um poço de temores para o ser humano. Daí a associação da cor negra a tudo que é misterioso ou que possa trazer malefício. Na Idade Média, acreditava-se que os animais de cor negra eram encarnações do demônio ou seus emissários. Vem dessas superstições a crença de que o gato, principalmente o preto, era o animal predileto das bruxas. Na época da Peste Negra, por conta da ideia de que esses animais eram os causadores da doença, os infelizes bichanos eram exterminados aos borbotões. Hoje se sabe que a falta de higiene da época atraía ratos, cujas pulgas, picando as pessoas, transmitiam a peste bubônica. Ou seja: os gatos, naturais predadores, teriam sido grandes auxiliares dos seres humanos ao caçarem os verdadeiros disseminadores da doença.

A suposição de que os gatos têm sete ou nove vidas (e aqui não vamos comentar a numerologia) vem do equilíbrio e da agilidade dos felinos, da ideia de que eles sempre caem sobre as quatro patas e, presumivelmente, não se machucam numa queda. Por isso o gato não morreu quando atiramos o pau nele na cantiga infantil. Talvez por isso, também, tenha sido o animal escolhido por Schrödinger para seu experimento mental.

“Estar de gato amarrado” é hoje uma expressão desusada, mas que designava alguém muito embriagado, “cercando frango” (alguém já tentou perseguir um frango fujão?), por estar cambaleando, em plena carraspana. Segundo o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo, em seu livro Locuções Tradicionais no Brasil, a menção ao gato (no masculino) deve-se a um equívoco. A expressão originária era “amarrar a gatA (feminino)” e tem origem náutica, do tempo dos barcos a vela, porque “gata” era o nome da vela de maior dimensão do mastro de ré. Como esse mastro também era chamado de mezena ou mesena, a gata (vela) também era conhecida por esse nome.

Pois bem. Com a gata caçada ou ferrada (enrolada, amarrada), a nau oscila mais nas ondas do mar. Não é difícil imaginar como os marinheiros andam quando o navio está balançando desse jeito, e é por isso que o andar cambaleante do bêbado foi associado à “gata (vela) amarrada”. Quando a gata está solta, ela gera mais uma superfície de oposição ao vento, e assim o navio retoma um pouco de equilíbrio.

O jogo do bicho, considerado ilegal mas muito popular no Brasil, rendeu várias expressões pitorescas. Uma das mais conhecidas é “deu zebra”. A zebra não está entre os vinte e cinco animais do jogo do bicho, e portanto “dar zebra” representa um acontecimento inesperado ou improvável. Segundo o Guia dos Curiosos – Língua Portuguesa, do jornalista Marcelo Duarte, a expressão foi criada em 1964, durante o Campeonato Carioca de futebol. Consta que pouco antes do início de uma partida entre o poderoso Vasco da Gama e a Portuguesa carioca, time pequeno treinado por Gentil Cardoso, este técnico, confiante no seu time, teria dito a frase “Acho que hoje vai dar zebra”. A Portuguesa ganhou por um placar de 2 a 1, e assim a expressão se popularizou. Apesar do início alvissareiro, hoje em dia ela designa algo que não deu certo, ainda que devido a algum imprevisto.

Um dos bichos mais indesejados é a borboleta preta, pois a crendice tradicional é de que ela porta maus presságios, trazendo o aviso de infelicidades futuras, afastando a alegria, prenunciando a morte. Machado de Assis fixou magistralmente a superstição em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Em grego, a palavra “psiquê” tanto pode ser “alma” como “borboleta”, ante a alegoria da borboleta que, depois de muito rastejar como lagarta, fecha-se num casulo em morte aparente, para depois ressurgir com asas, e assim flutuar entre as flores na primavera. Assim a alma humana, depois de purificada pelo sofrimento, pode finalmente encontrar a felicidade.
Isso serve para as borboletas diurnas e coloridas. Mas, como representação do espírito, as borboletas escuras não gozam de boa reputação.

O pobre do burro também não tem melhor sorte no imaginário popular. “Dar com os burros n’água” significa fracassar, representando algo por que alguém muito se empenhou, mas sem sucesso. A expressão vem de um conto popular que relata a competição entre dois tropeiros. Eles deveriam levar um fardo, de sua escolha, até um ponto determinado, mas sem conhecer o caminho. Um escolheu um fardo de sal; o outro, algodão. Acontece que havia um rio no meio do percurso. Quando os dois competidores o atravessaram, a carga de sal se dissolveu, e a de algodão se encharcou, ficando tão pesada que quase afogou o burro que a levava. Este, para não morrer, corcoveou para se livrar da carga, que também acabou se perdendo no rio. Nenhum dos tropeiros venceu o desafio, e “dar com os burros n’água” passou a designar algo previsivelmente não vai dar certo.

Se os negócios vão mal apesar de todas as precauções, “tem caveira de burro enterrada”. Pior ainda se a pessoa insiste, e continua “dando com os burros n’água”, e a “caveira de burro enterrada” continua anunciando miséria. Foi num jumento que a Virgem e o Menino Jesus fugiram para o Egito. Burros e jumentos deveriam ter a gratidão das pessoas. Então, qual o motivo para uma caveira de burro representar tamanha desgraça?
O burro é um símbolo de resistência: é teimoso e parece incansável. Alimenta-se de qualquer coisa que encontre. Enfrenta fome, sede, excesso de cargas. É um animal de trabalho pesado, e as pessoas não o consideram um bicho de estimação. Ao contrário, dão-lhe chicotadas, e o animal trabalha sem direitos e sem descanso até morrer – daí a expressão “trabalhar como um murro de carga”. Desse modo, o burro e o jumento não têm como dar testemunho de vitórias, sucessos e êxitos – apenas de trabalho pesado e infeliz, servindo sua caveira para recordar uma existência desgraçada, sem alegrias, sem compensações.

Burros e jumentos são animais inteligentes, de instinto acurado, não tendo nenhum traço da estupidez com que os pintou o folclore.

Por sorte, hoje existem ativistas e organizações que defendem os direitos dos animais; agora é crime atirar o pau no gato e judiar de animais de carga.

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