quarta-feira, 6 de agosto de 2014

EM CIMA DA HORA - Almeida Garrett e a FLIP 2014. Oi?

Por Susana Ventura.

Almeida Garrett
Num dos momentos altos de Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, o narrador, cheio de ironia, dirige-se ao ‘leitor benévolo’ e dá uma ‘receita’ de composição da ficção que mais fazia sucesso na época... 

Viagens na minha terra, Nova Alexandria. Veja na nossa loja virtual.

Não resisto a citar:

‘Todo o drama e todo o romance precisa de:

Uma ou duas damas.

Um pai.

Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos.

Um criado velho.

Um monstro, encarregado de fazer as maldades.

Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios.

Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul - como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scraapbooks, forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se um pouco de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminaram...(estilo de pintor pintamonos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.’

Garrett foi o intelectual que introduziu o Romantismo em Portugal e também fundou o teatro em terras lusas. Além disso, foi um escritor de excelência em vários gêneros, às vezes trabalhando com um elenco de personagens e elementos históricos bem similares aos que ele descreveu no trecho que reproduzi acima.

Observando a programação oficial da FLIP ouso fazer uma pequena lista de elenco, à maneira de Garrett:

1, 2 ou 3 jovens escritores – quanto mais jovens melhor (bonitinhos, de preferência)

1 ou 2 escritores da terceira idade (não mais que isso, porque ninguém vai a festival para ver velhinhos)

Umas poucas escritoras – quase que só para constar (ah, e nada de mulher feia, por favor... se houver ‘alguma’ muito bonita, sim, sim!)

Escritores polêmicos o quanto baste (há questões candentes, guerras iminentes ou passadas? É neste ingrediente que ficará provado que a curadoria é antenada)

Um punhado de jornalistas, antropólogos e sociólogos que escrevem, espalhados pela programação (para fornecer colorido e frescor ao conjunto)

Algum representante de minoria (à escolha)

(Muito cuidado para evitar os gagos, os tímidos, os obesos, os feios, os muito esquisitos...)

Mescla-se tudo bem. Escolhem-se, como guarnição, alguns moderadores corretos, simpáticos, que saibam medir tempo, que se lembrem de fazer contato visual com o pessoal de apoio e que saibam o que fazer com as questões que chegam e... ufa, temos o básico!

No caso da lista de personagens do narrador do romance de Garrett, com ela se podem construir ótimos dramas e romances ou obras protocolares, destinadas a cumprir a ânsia social por novos livros nos gêneros ‘do momento’. Na FLIP dá-se o mesmo...

Em São Paulo, na Livraria da Vila, dois escritores participantes da FLIP estiveram à conversa com professores/mediadores e público numa programação  imediatamente posterior à realização do Festival (dias 4 e 5 de agosto, dentro da programação Pós-FLIP). Eleanor Catton e Almeida Faria falaram para uma pequena plateia de interessados e foi muito bom, com uma densidade e profundidade bem diferentes das alcançadas em suas apresentações no festival.

O mais novo desta FLIP 2014 esteve na programação Off-FLIP, que cresceu em quantidade, qualidade e foi capaz de oferecer um cardápio interessante que dialogou intensamente com a programação oficial. E continua em algumas capitais,  na programação Pós-FLIP. Mas isso é assunto para a próxima coluna!

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