segunda-feira, 18 de agosto de 2014

BRINCANDO COM A LÍNGUA - Nosso queijo perderá um pedaço

Por Therezinha Hernandes.

As línguas modificam-se, evoluem, são dinâmicas, e por isso se mantêm vivas. São assim porque existem pessoas falando e escrevendo o tempo todo.

Resumindo a vida de uma língua, ela nasce na fala e se perpetua na escrita. Já dissemos, aqui mesmo no blog, que uma língua pode morrer se os seus falantes forem obrigados a se comunicar em outra língua, como é o caso do N/u (leia aqui); também alertamos para o perigo de certas simplificações, imposições e reduções de vocabulário, que acabarão por limitar o próprio pensamento, já que, para expressá-lo, precisamos da linguagem. De qualquer modo, uma língua não se modifica por decreto.

A novidade, agora, é que o nosso queijo poderá perder um pedaço. À primeira vista, parece algo banal e inofensivo, afinal, as pessoas comem queijo. Quem se importa com isso? Mas não é esse o caso.

Vamos acabar com o suspense e explicar de uma vez: está em fase de elaboração um projeto de lei para criar uma nova reforma ortográfica, visando a “facilitar” a escrita, basicamente por meio da extinção de dígrafos, da eliminação do “H” inicial de certas palavras e da representação de determinados fonemas (sons) por uma única letra.

Segundo essa proposta, palavras como “homem”, “humanidade”, “heterogêneo”, “homogêneo”, “hierofante”, “herpes”, “hoje”, etc., cujo “h” inicial não é pronunciado, perderão essa letra, passando a se escrever “omem”, “umanidade”, “eterogêneo”, “omogêneo”, “ierofante”, “erpes”, “oje”, etc.

A justificativa para tal exclusão é a inutilidade desse “h”, na medida em que não é pronunciado, e os responsáveis pelo projeto exemplificam com o italiano, que não apresenta palavras com “h” inicial.

Em português, o “h” inicial se manteve devido à etimologia das palavras, que já eram escritas assim na sua origem.

Quanto ao que chamamos de extinção de dígrafos e representação de certos fonemas (sons) da língua por uma única letra, trata-se da substituição de “ss”, “sc”, “sç”, “xc” por um “s” simples, visto que aqueles dígrafos representam na escrita o som do “s” sibilante; e também dos dígrafos “qu” e “gu” (em que o “u” não é pronunciado).

É nesse ponto que o queijo perde um pedaço: “queijo” passaria a se escrever “qeijo”, “quente” perderá calor para ser escrito “qente”, o “queixo” vai cair quando passar a ser escrito “qeixo”; igualmente, uma “guerra” não será menos violenta se for escrita “gerra”.

Assim, “passado”, “nascer”, “desça”, “excelente” passariam a ser escritos “pasado”, “naser”, “desa”, “eselente”.

Da mesma maneira, o dígrafo “ch” seria substituído simplesmente por “x”, visto ser esse o seu som, de modo que “chá”, “chegar”, “achado”, “macho”, “bolacha” teriam sua escrita modificada para “xá”, “xegar”, “axado”, “maxo”, “bolaxa”.

Seguindo esse princípio, também palavras em que o “x” tem som de “s” teriam sua grafia alterada: “máximo” viraria “másimo”.

Nem mesmo o “s” ficará impune: se tiver som de “z”, passará a ser representado por essa letra: “casa” se escreverá “caza”, “presunto” será “prezunto”, “mesa” virará “meza”, e assim por diante.

O “x” com som de “z” terá a mesma sorte: “êxito” será “êzito”, “exame” se tornará “ezame”.

Dizem os defensores desse projeto que o objetivo é facilitar a escrita e, por via de consequência, auxiliar o aprendizado da língua. Dizem.

No entanto, é necessário ponderar algumas questões.

A projetada reforma pode resultar em muita confusão. Se “hesitar” se escreverá “ezitar”, com a forma “hesito” (“eu hesito”, primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo hesitar) passando a ser escrita “ezito”, e “êxito” se tornará “êzito”, a simples ausência do acento nesta última deixará o leitor em dúvida: “quando eu ‘ezito’, não tenho ‘êzito’”.

Por outro lado, mas não sem importância, a última reforma ortográfica ainda é muito recente. Sua proposta era aproximar, na escrita, os países lusófonos, ou seja, que falam português. Essa reforma aboliu o trema, antes usado para indicar graficamente quando o “u” deveria ser pronunciado nos grupos “gue”, “gui”, “que”, “qui”, como por exemplo em “agüente”, “lingüiça”, “freqüente”, “tranqüilo”. A partir da última reforma ortográfica, essas palavras passaram a se escrever “aguente”, “linguiça”, “frequente”, “tranquilo”.

Isso deveria supostamente aliviar o fardo dos estudantes e de todos os que escrevem, mas o fato é que dificultou a leitura. Palavras como as citadas acima são de uso corriqueiro, mas os que estão aprendendo o português já não sabem como ler palavras menos usuais como “delinquir”, “quiproquó”, nem “solilóquio” (que já não tinha trema mesmo). Ainda que não sejam empregadas quotidianamente, existem em textos mais antigos.

O vocabulário da nossa língua está se reduzindo dia após dia, e haverá um tempo em que nossa literatura será esquecida. A língua, assim, gradualmente morrerá.

Se a intenção da última reforma ortográfica era aproximar os falantes do português, a nova proposta vai em direção diametralmente oposta, a não ser que os seus defensores pretendam impor a nova grafia aos demais países.

Esse projeto, portanto, entra em contradição com a reforma anterior – ainda que, particularmente, eu não concorde com a abolição do uso do trema, que na minha opinião era bastante útil na leitura.

A alegada facilitação da escrita, que supostamente auxiliaria o aprendizado da língua, na prática vai implicar que todos – todos- os brasileiros reaprendam a escrever.

Facilitar o aprendizado não é o mesmo que reduzir a língua: é fornecer meios verdadeiramente eficazes tanto para que os alunos aprendam, como também para que os professores possam ensinar. Os alunos, da sua parte, precisam ser expostos aos conhecimentos, a fim de que não fiquem restritos à experiência de vida que já possuem. Ter acesso a outras ideias, a outras maneiras de pensar – isso é evolução. Os professores, por seu turno, precisam ter condições satisfatórias para ensinar. Ambos precisam de estímulos; ambos precisam e merecem ter prazer no processo ensino-aprendizagem.

Não será essa pretensa reforma que vai mudar o painel do ensino do português, assim como da educação em geral. Só o que vai ocorrer é que o “qeijo” vai perder um pedaço, a “bolaxa” não terá sabor, coisas “qentes” esfriarão, uma “caza” jamais será um lar, e nós seremos menos de nós mesmos se nor tornarmos apenas “umanos”.

Para quem quiser conferir a proposta de reforma ortográfica, eis o link:
www.simplificandoaortografia.com.br

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