Por Susana Ventura.
Nesta semana novamente me encontrei diante do questionamento
‘a literatura, serve para que?’. No contexto, era a leitura de literatura e o
ensino da literatura que estavam sendo diretamente questionados.
Um nó se instalou no meu peito ao ouvir a brilhante
professora sustentando: ‘Não serve para nada e qual o motivo de tudo precisar
servir para alguma coisa?’
A argumentadora tinha maestria e dizia isso em prol da
liberdade individual, em que a leitura pode ter papel de destaque.
Mas eu, eu mesma, acho que diante da mesma pergunta
continuaria respondendo: ‘Serve para muita coisa, ô se serve! Quer ouvir um
pouco?’
A leitura de literatura serve para a gente viver outras
vidas que não as nossas e ajuda a entender a nossa própria trajetória. Nos
confere dimensão do que é humano, para o bem e para o mal.
‘Sonho acordado das civilizações’, como formulou Antonio
Candido a partir de Otto Ranke ela é uma forma de conhecimento particular e
especial. Reveste de carne, ossos, sangue e sentimentos as gentes e os
tempos em que viveram.
Quanto sobre Angola eu não aprendi lendo Mayombe, de Pepetela? E na poesia de José Craveirinha e
Carlos Drummond de Andrade quanto de Moçambique e do Brasil entraram pelos meus
poros e me iluminaram?
Graciliano Ramos me levou junto a um dos piores cárceres do
Estado Novo, o presídio da Ilha Grande, em Memórias
do cárcere. E outras narrativas de prisão, de Mia Couto (Vinte e Zinco, ‘Mas Carlota Gentina não
chegou de voar?’) e Luandino Vieira (‘O
fato completo de Lucas Matesso’) completaram para mim o mapa geográfico da
opressão nos nossos territórios de língua portuguesa.
Guerra no coração do
cerrado, de Maria José Silveira me
levou ao século XVIII brasileiro e ao encontro nada isento entre colonizadores
e indígenas brasileiros. Me levou para o lado de Damiana da Cunha e me deixou
ali, respirando do lado dela pelas páginas que revelavam/ criavam a trajetória
extraordinária daquela mulher.
Lembro-me de tremer na primeira leitura de poemas do Romanceiro da inconfidência, de Cecília
Meireles e das lágrimas que Rilke me fez chorar.
Mário de Andrade, ah, Mário, a minha trajetória com ele é
tão longa e tão boa, que sou mesmo mais uma amiga que não recebeu nenhuma carta
pessoal, mas tem aproveitado muito e muito de tudo o que de bom ele escreveu
aos amigos. E dos poemas, tantos são os que sei de memória... Contos? ‘Tempo da camisolinha’, ‘O peru de
Natal’, qual o meu favorito? O melhor é não precisar escolher, todos são meus.
E quanto a leitura de literatura não tem me trazido de alegria e beleza, ao oferecer
contraponto e complemento ao vivido?
Um episódio apenas, com Jorge Amado, amado escritor. Estava
eu há uns anos vivendo uma vida sem alegria e com pouco alento, num mundo
branco e preto e calado, quando caiu-me nas mãos um exemplar surrado de Os velhos marinheiros. Conhecendo já Quincas
Berro-D’Água fui logo ao encontro do então desconhecido Capitão- de-longo-curso Vasco Moscoso de
Aragão.
Em poucos minutos não conseguia deixar a narrativa e era
penoso sair de casa para cumprir os compromissos. Numa tarde em que peguei
firme para ler o ‘meu’ livro fui surpreendida pela campainha.
Eu morava num prédio baixo, com portas de vidro, um daqueles
pequenos edifícios antigos, de dois andares apenas. Abri a porta e encontrei a vizinha, senhora
distinta, que me olhava muito espantada: minhas gargalhadas provocavam sua
visita. Acontecia alguma coisa comigo? Ela estava preocupada...
Acontecia, sim, eu não
estava mais lá, estava mesmo era num subúrbio de Salvador, vivendo a vida
verdadeira nas mentiras do Capitão. E despachei-a rapidamente para poder
continuar lendo, na época nem ligando para a cara espantadíssima que agora me
volta à memória.
Anos depois, ao ler Navegação de Cabotagem emocionei-me com
o relato de Jorge, do telefonema pessoal que recebera no apartamento de
Copacabana em 1960. Depois de se declarar leitora fiel, que comprava e lia
todos os livros, a interlocutora revelava haver interrompido a leitura de Os velhos marinheiros para conversar com
o autor. Deixo que Jorge conte parte do desabafo da leitora:
‘Parei de ler na página
onde o Capitão está bêbado e desmoralizado numa pensão miserável de Belém, não
tive coragem de prosseguir. Estou telefonando para lhe dizer que se você não o
reabilitou, não lhe restituiu a dignidade e a alegria, jamais voltarei a ler
um livro seu.’
Também eu, que não telefonei a Jorge Amado, temi demais pela
morte do sonho que se anunciava naquele ponto da narrativa. A realidade com
todo o seu poder esmagador parecia prestes a vencer, uma vez mais. Jorge,
mestre como era, ensinou nas páginas seguintes que ‘impossível não há’ e
resgatou a esperança de todos os menos afortunados, os pequenos, os vencidos da
vida como somos quase todos, mostrando que, às vezes, as coisas se ajeitam (e
muito bem).
Para que serve a leitura de literatura? Serve para viver,
para viver melhor.
Digo e provo a quem quiser e tiver paciência para me escutar
falar por horas, porque eu estou só
começando...
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