quinta-feira, 14 de agosto de 2014

BRASIS, PORTUGAIS E ÁFRICAS - Serve para que?

Por Susana Ventura.


Nesta semana novamente me encontrei diante do questionamento ‘a literatura, serve para que?’. No contexto, era a leitura de literatura e o ensino da literatura que estavam sendo diretamente questionados.

Um nó se instalou no meu peito ao ouvir a brilhante professora sustentando: ‘Não serve para nada e qual o motivo de tudo precisar servir para alguma coisa?’

A argumentadora tinha maestria e dizia isso em prol da liberdade individual, em que a leitura pode ter papel de destaque.

Mas eu, eu mesma, acho que diante da mesma pergunta continuaria respondendo: ‘Serve para muita coisa, ô se serve! Quer ouvir um pouco?’

A leitura de literatura serve para a gente viver outras vidas que não as nossas e ajuda a entender a nossa própria trajetória. Nos confere dimensão do que é humano, para o bem e para o mal.

‘Sonho acordado das civilizações’, como formulou Antonio Candido a partir de Otto Ranke ela é uma forma de conhecimento particular e especial. Reveste de carne, ossos, sangue e sentimentos as gentes e os tempos  em que viveram.

Quanto sobre Angola eu não aprendi lendo Mayombe,  de Pepetela? E na poesia de José Craveirinha e Carlos Drummond de Andrade quanto de Moçambique e do Brasil entraram pelos meus poros e me iluminaram?

Graciliano Ramos me levou junto a um dos piores cárceres do Estado Novo, o presídio da Ilha Grande, em Memórias do cárcere. E outras narrativas de prisão, de Mia Couto (Vinte e Zinco, ‘Mas Carlota Gentina não chegou de voar?’) e  Luandino Vieira (‘O fato completo de Lucas Matesso’) completaram para mim o mapa geográfico da opressão nos nossos territórios de língua portuguesa.

Guerra no coração do cerrado,  de Maria José Silveira me levou ao século XVIII brasileiro e ao encontro nada isento entre colonizadores e indígenas brasileiros. Me levou para o lado de Damiana da Cunha e me deixou ali, respirando do lado dela pelas páginas que revelavam/ criavam a trajetória extraordinária daquela mulher.

Lembro-me de tremer na primeira leitura de poemas do Romanceiro da inconfidência, de Cecília Meireles e das lágrimas que Rilke me fez chorar.

Mário de Andrade, ah, Mário, a minha trajetória com ele é tão longa e tão boa, que sou mesmo mais uma amiga que não recebeu nenhuma carta pessoal, mas tem aproveitado muito e muito de tudo o que de bom ele escreveu aos amigos. E dos poemas, tantos são os que sei de memória...  Contos? ‘Tempo da camisolinha’, ‘O peru de Natal’, qual o meu favorito? O melhor é não precisar escolher, todos são meus.

E quanto a leitura de literatura não tem me  trazido de alegria e beleza, ao oferecer contraponto e complemento ao vivido?

Um episódio apenas, com Jorge Amado, amado escritor. Estava eu há uns anos vivendo uma vida sem alegria e com pouco alento, num mundo branco e preto e calado, quando caiu-me nas mãos um exemplar surrado de Os velhos marinheiros. Conhecendo já Quincas Berro-D’Água fui logo ao encontro do então desconhecido  Capitão- de-longo-curso Vasco Moscoso de Aragão.

Em poucos minutos não conseguia deixar a narrativa e era penoso sair de casa para cumprir os compromissos. Numa tarde em que peguei firme para ler o ‘meu’ livro fui surpreendida pela campainha.

Eu morava num prédio baixo, com portas de vidro, um daqueles pequenos edifícios antigos, de dois andares apenas.  Abri a porta e encontrei a vizinha, senhora distinta, que me olhava muito espantada: minhas gargalhadas provocavam sua visita. Acontecia alguma coisa comigo? Ela estava preocupada...

 Acontecia, sim, eu não estava mais lá, estava mesmo era num subúrbio de Salvador, vivendo a vida verdadeira nas mentiras do Capitão. E despachei-a rapidamente para poder continuar lendo, na época nem ligando para a cara espantadíssima que agora me volta à memória.

Anos depois, ao ler Navegação de Cabotagem emocionei-me com o relato de Jorge, do telefonema pessoal que recebera no apartamento de Copacabana em 1960. Depois de se declarar leitora fiel, que comprava e lia todos os livros, a interlocutora revelava haver interrompido a leitura de Os velhos marinheiros para conversar com o autor. Deixo que Jorge conte parte do desabafo da leitora:

‘Parei de ler na página onde o Capitão está bêbado e desmoralizado numa pensão miserável de Belém, não tive coragem de prosseguir. Estou telefonando para lhe dizer que se você não o reabilitou, não lhe restituiu a dignidade e a alegria, jamais voltarei a ler um  livro seu.’

Também eu, que não telefonei a Jorge Amado, temi demais pela morte do sonho que se anunciava naquele ponto da narrativa. A realidade com todo o seu poder esmagador parecia prestes a vencer, uma vez mais. Jorge, mestre como era, ensinou nas páginas seguintes que ‘impossível não há’ e resgatou a esperança de todos os menos afortunados, os pequenos, os vencidos da vida como somos quase todos, mostrando que, às vezes, as coisas se ajeitam (e muito bem).

Para que serve a leitura de literatura? Serve para viver, para viver melhor.
Digo e provo a quem quiser e tiver paciência para me escutar falar por horas, porque  eu estou só começando...

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