No dia de hoje, Nelson
Mandela completaria 95 anos (Mvezo, 18 de julho de 1918 — Joanesburgo, 5 de
dezembro de 2013). Neste dia, em homenagem ao herói da luta contra o apartheid,
ofereço a o leitor um capítulo de meu romance-biografia O Jovem Mandela:
13º
capítulo: Jardineiros e suas searas
DAQUI A CINCO MIL ANOS um pai
contará para seu filho dormir a lenda de um herói. Essa lenda dirá de um menino
do Transkei, que calçou o primeiro par de sapatos quando ingressou um tanto
tardiamente na escola, que viu e viveu os piores tormentos da vida humana, mas
que, a despeito de todas as previsões funestas, liderou seu povo em uma saga
épica e o conduziu uma vitória gloriosa sobre as mais abomináveis formas de
opressão e humilhação do homem sobre o próprio homem. Essa lenda que
atravessará os milênios futuros terá um
nome: NELSON ROLIHLAHLA MANDELA.
Comparações são sempre
imprescindíveis na vida, caso contrário não saberíamos discernir entre o justo
e o injusto, o correto e o incorreto, o bom e o ruim. Já analogias são
perigosas, porém, guardando-se os devidos cuidados, podem ser úteis.
Quando entrei na universidade, em
Fort Hare, parte de minhas atribuições era cuidar de jardim. Outros
considerariam essa atividade um tanto sem graça, não eu, que vivi minha infância
descalço, a observar a beleza de colinas, árvores, arbustos, gramíneas, e os
insetos e animais que se beneficiavam da vegetação.
Naturalmente, quando menino, de pé no
chão e pedra nas mãos para dar em passarinho, minha preocupação essencial era trepar
nas árvores e sentir, lá do alto, a brisa fresca ou o mormaço quente a subir do
chão empoeirado. E também observar o azulado das montanhas ou a linha perfeita
do horizonte.
Na universidade, se tratava de
aproveitar a quietude das plantas para pensar sobre o curso, sobre a vida e
sobre o porquê de haver tantos pobres e tão poucos ricos sobre a face da terra.
Uma ou outra vez levei uma ferroada de abelha enquanto pensava, mas, muitas
vezes, meus pensamentos me ferroaram muito mais.
Era verdadeiramente interessante
observar como algumas flores eram abundantes e exuberantes, mas de vida breve,
enquanto outras eram modestas em número, tímidas na beleza, mas duradouras. No
início tinha pena das duas: das primeiras, pela brevidade; e das segundas, pela
falta de maiores atrativos.
Porém, observei que alguns
passarinhos e insetos polinizadores frequentavam apenas um dos tipos de flores,
enquanto outros, apenas o outro. Também observei que a simples mudança de lugar
de um vaso pode injetar novas energias numa planta ou arruiná-la de uma vez.
E não apenas o grau de incidência de
sol era determinante de sucessos ou insucessos, mas também a exposição ao
vento. Algumas plantas suportavam excelentemente correntes contínuas de vento,
outras, em pouco tempo murchavam e perdiam as folhas, se expostas a elas.
Confesso que estraguei algumas
plantas ao realizar poda errada ou, simplesmente, por temor, não realizar poda
nenhuma. Embora um jardim pareça uma realidade uniforme, não é. Cada planta tem
sua própria forma de ser e de viver. Uma poda mais cuidadosa é exigida por uma,
enquanto outra, de tempos em tempos, necessita de uma poda radical para que
novos ramos verdes e sadios surjam.
As particularidades chegam mesmo a
minúcias inimagináveis para um iniciante, como era o meu caso. Em algumas
ocasiões, doido para terminar rápido o trabalho e ir me divertir com os amigos,
me precipitava no trato de alguns exemplares. Uma vez me surpreendi com o
desenvolvimento insatisfatório de um tipo de trepadeira, e passei a observá-la com
maior atenção. Ela lançava ramos até vigorosos para todos os lados, mas estes
não chegavam a lugar algum.
Intrigado, quando um desses ramos
avançava sobre o caminho, procurei, com o máximo cuidado, enredá-lo em uma
haste que fixei no chão. Tudo ia bem, até que toquei na ponta do ramo. Apesar
de a parte de baixo ser flexível, mesmo elástica e firme, a ponta era
extremamente frágil e quebradiça. Então, me dei conta de que, toda vez que
procurava ajeitar aleatoriamente o emaranhado de ramos, eu mesmo partia suas
pontas e condenava a planta ao nanismo. Depois disso, procurei orientar para a
posição adequada cada ramo individualmente, tocando apenas em suas partes mais
firmes, inferiores. Demorou um pouco, mas a planta vicejou. A verdade é que,
até aquele momento, a praga daquela planta era o seu jardineiro afobado.
Tratar cada planta como um indivíduo
do jardim foi uma descoberta muito significativa. Enquanto algumas exigem
cuidados diários, para outras esses cuidados diários se tornam um estorvo.
Algumas aceitam ser manipuladas, outras, principalmente nas regiões de brotos,
o simples calor humano ou toque das pontas dos dedos as condena à morte. É
mesmo curioso, mas essas mesmas plantas que rejeitam o contato humano, por mais
afeto que se imprima nele, aceitam bem ser manipuladas com hastes de metal ou
de bambu.
E há eventos com as quais temos
simplesmente que nos conformar: algumas plantas crescem rapidamente, tornam-se
altas e frondosas, enquanto outras crescem lentamente, nunca atingem grandes
alturas e seus galhos são, embora elegantes, finos como taquaras.
Some-se a isso que é necessário
sempre contar com as ervas daninhas, que devem ser eternamente removidas, pois
sempre voltam, seja por um pedaço de raiz ter permanecido oculto na terra, seja
pela ação do vento, que não cessa de semeá-las.
Porém, há ainda, é preciso reconhecer
os limites de nossa condição, as perdas, algumas inevitáveis e extremamente
dolorosas.
Quando uma planta é acometida por uma
doença de difícil detecção, e cujo tratamento é tardio ou ineficaz, ela
fatalmente fenecerá. Se foi bonita e frondosa, se foi frágil e elegante, dela
ficará apenas a lembrança e, eventualmente, as sementes ou mudas que gerou.
Nesse caso, o carinho para com as sementes e as mudas deve ser redobrado, para
que o patrimônio da espécie não sofra risco de extinção e, pelo contrário,
resulte em novos frutos e sementes.
Nossa luta por um mundo mais justo se
parece muito com um jardim, em que os jardineiros são aqueles que pugnam por
transformações verdadeiras, aqueles que os republicanos espanhóis, em sua luta
contra o fascismo, chamavam “juventude do mundo”.
Mas isso é uma analogia, uma licença
poética, que requer o máximo de cuidado e atenção da parte de quem a recebe,
pois o mundo dos dias atuais não é exatamente um jardim para todos e, embora
revolucionários sejam uma espécie de jardineiros, sua seara é de esperanças e
sonhos, que não são nada se não brotarem do povo, se não estiverem enraizados
no povo, e se não florescerem e frutificarem para o povo.
NOTAS
1) Duas das atividades mais
apreciadas por Nelson Mandela eram a jardinagem e a horticultura. Quando
estudante cuidou do jardim de um dos professores de Fort Hare, como uma de suas
atribuições extraclasse. Tão logo lhe foi permitido, cultivou na ilha de Robben
hortaliças e tomates, que inclusive chegaram a abastecer modestamente a cozinha
da penitenciária. Sem nunca perder oportunidade para extrair lições de tudo na
vida, Mandela aproveitou essa sua inclinação para refletir sobre o movimento de
luta contra o apartheid. Em sua autobiografia ele observou: “De certa forma, eu
via a horta como uma metáfora para certos aspectos de minha vida. Um líder
também deve cuidar de sua horta; ele também planta sementes, e então observa,
cultiva e colhe o resultado. A exemplo do jardineiro, um líder deve se
responsabilizar pelo que cultiva; ele deve ocupar-se com seu trabalho, tentar
repelir os inimigos, preservar o que pode ser preservado e eliminar o que não
pode prosperar” (Mandela, 2012, p. 597-598)
2) Em março 1980 o jornal
Johannesburg Sunday Post estampa em primeira página o slogan da campanha
internacional LIBERTEM MANDELA! Idealizada por Oliver Tambo e pelo CNA, agora
uma força poderosa e irresistível, a campanha personaliza no prisioneiro 466 da
ilha de Robben todo o esforço pela libertação dos presos políticos da África do
Sul e pelo fim do apartheid. A partir desse momento, a história se acelera
também dentro da penitenciária: a estratégia de aniquilação dos líderes da luta
pela liberdade fracassou. A semente da liberdade, plantada com cuidado por todo
o país, inclusive dentro das prisões, e regada amorosamente pelo sacrifício de
milhões de africanos ao longo dos anos, tornou-se uma árvore frondosa, que
começa a dar uma exuberante florada, cujos frutos eclodirão em abundância a
partir do final dessa década.
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