terça-feira, 29 de setembro de 2015

Beethoven.sp.br


Por Augusto Rodrigues.


Quando entrei na fila, estiquei o pescoço para o lado e contei as pessoas à minha frente: doze. Seis senhoras, dois senhores, um carequinha de meia idade, um gordinho de uns trinta anos, um adolescente sonolento e uma moça baixa. Todos muito bem vestidos.
As seis senhoras conversavam sobre a acústica de casas de concerto na França e na Itália. Os dois senhores não se falavam. O carequinha lia a Veja. O gordinho lia o Estadão. O adolescente sonolento ouvia música nos fones de ouvido. A moça baixa olhava em volta e para as pessoas na fila, batendo o bico do sapato no chão. 
Era um belo dia: o sol iluminava o céu claro e já começava a esquentar. Embora o movimento na praça fosse ainda baixo, passava um ou outro a pé por ali a todo o momento. Alguns até cruzavam pela fila, em vez de contorná-la. Um deles era um ceguinho negro, muito pobre, que apalpava o chão com uma vareta, talvez ainda neófito nessa prática, pois tinha muita dificuldade de andar pela rua. De repente, trombou com uma das senhoras na fila, que ficou horrorizada.
–– Desculpem. Onde é o metrô? — perguntou o ceguinho.
–– É mais para lá. Aqui é a Sala São Paulo –– respondeu o carequinha, com tom de piedade.
Como estávamos todos virados para o outro lado, não tínhamos visto o ceguinho se aproximar. Depois que passou por nós, ele ia ainda rente às paredes da Sala, às vezes esbarrando em suas quinas. Mais lá à frente, vi que um homem que passou por ele, também negro, ofereceu ajuda para conduzi-lo até aonde queria ir.
Dois minutos em seguida, um mendigo, ainda criança, pediu ao carequinha um real para comprar um café com leite. Este lhe deu o dinheiro, e voltou a ler sua Veja. Um minuto depois, mais dois mendigos infantis, sujismundos e esfarrapados, vieram pedir dinheiro às senhoras e ao carequinha. Também para um café com leite. As senhoras negaram e se afastaram, com uma expressão de repulsa e medo. Com o cenho franzido, elas olharam para a unidade comunitária móvel da Polícia Militar estacionada logo ali em frente. O carequinha deu um real para cada uma das crianças, que lhe agradeceram muito. Após mais alguns instantes, o primeiro menino voltou.
–– Muito obrigado, senhor. Deus te abençoe — disse ele ao carequinha, mostrando o copo de café com leite na mão.
O carequinha sorriu e não disse nada. O menino foi embora. As senhoras o acompanharam com os olhos.
“Sei que este é um concerto concorrido, por isso cheguei uma hora antes de a bilheteria abrir” –– pensei eu comigo. “Além do mais, tenho estado esperando para assistir à Nona Sinfonia há mais de vinte anos. Aliás, os músicos bem que poderiam ter alguma outra entrada, para não ter de ficar cruzando a fila da bilheteria para entrar e sair da Sala. A maioria deles parece ser loira de olhos claros. Algumas moças têm uma expressão bem eslava, talvez russa.”
Junto com o crescente movimento de músicos entrando, a fila aumentava atrás de mim: agora eram mais dez que também esperavam ansiosos pela abertura da bilheteria, dali a meia hora. Quando olhei para a rua Mauá para verificar se meu carro ainda estava ali, vi uma mulher de meia idade, bastante obesa, surgindo de repente com um sorriso efusivo entre os mendigos e os músicos, e olhando para a fila. Foi recebida logo depois pela moça baixa, bem à minha frente. As duas sorriam, parecendo felizes com o encontro. 
Um senhor com os seus setenta anos, que estava atrás de mim, saltou à frente e abordou a recém-chegada.
–– Se vai comprar ingresso, vá para o fim da fila — disse ele, com firmeza.
A mulher obesa ignorou o senhor, que tinha um forte sotaque alemão, olhos claros atentos por trás dos óculos, e um corpo esguio ligeiramente arqueado. O homem voltou ao seu lugar. Após cinco minutos, tornou a abordar a mulher:
–– A fila está aumentando lá atrás. Você está perdendo tempo.
–– Eu já tinha avisado a ela que chegaria mais tarde. Eu venho de muito longe –– retrucou a mulher. O senhor não se impressionou, e disparou:
–– Ah, sim, então eu tenho dez amigos que morão muito longe que entraram aqui no fila quando chegarem também, passando no frente de todos esses outras pessoas que chegão aqui primeira!
Indignado, embora ainda contido, ele entrou na bilheteria e foi falar com alguém. Voltou e retomou seu lugar atrás de mim. Logo depois, saiu da fila novamente e abordou o carequinha, logo à frente das duas mulheres, procurando ganhar um partidário.
–– Volta para o seu lugar, cara, e fica na boa. Olha esse sol, esse céu azul. Não vou deixar você estragar meu dia — retrucou o carequinha.
O alemão tentou ainda reclamar com alguns dos homens mais atrás, que, assim como a mulher obesa, o ignoraram. Percebeu então que ninguém ali parecia se importar com o fato de aquela mulher ter “furado” a fila, nem mesmo os seguranças ou o pessoal da bilheteria.
         Faltavam dez minutos para a abertura das portas. Uma mulher, sujismunda e esfarrapada, veio em direção à fila e abordou uma das senhoras, enquanto esta papeava com suas companheiras sobre os concertos que assistira em Viena, por tantos anos a capital mundial da música erudita.
–– Senhora, dá uma moeda pra mim tomar um café? –– disse a pedinte.
A senhora negou e, com uma expressão de repulsa e medo, se encolheu. As outras senhoras olharam para o segurança ali na porta, que, para o horror de todas elas, gargalhava e gesticulava com um dos homens da limpeza, de costas para a fila. A moradora de rua se afastou, com a raiva, a vergonha e a miséria estampadas nos olhos. O alemão atrás de mim, agitado e inconformado, discutia com todos os outros na fila, esperando que compreendessem o que acontecia ali. Alguns também acreditavam que aquilo não era certo, mas não faziam menção de querer intervir. O homem esguio de olhos claros parecia estar sozinho em sua causa.    
Dez horas. A bilheteria abriu, e as pessoas começaram a entrar. Inquieto, o alemão tirou o celular do bolso e discou o número do Ingresso Rápido, que tinha pedido a alguém atrás dele.
–– Sim, estou aqui no fila do Sala São Paulo para comprar passagens para o Nona de Beethoven. Quero saber se pôde comprar lá com vocês. Sim, sim, pode ser. Plateia central é bom. Duas ingressos, por favor. Eu tenho Visa. Obrigado.
Desligou e foi embora. Quando ele saiu da fila, todo o pessoal mais à frente, que não tinha ouvido sua conversa como eu ouvi, estava curioso para saber o que havia acontecido com o “gringo encrenqueiro”. “Ele foi embora? Ele desistiu? Tem gente que gosta de criar problema mesmo, não é? Deve ter levantado com o pé esquerdo. Que sujeito mais desagradável. Ele queria era estragar o nosso dia. Sujeito infeliz” –– eram os comentários que se ouviam.
A fila andava depressa, já que havia três caixas atendendo lá dentro (segundo especulavam à minha frente). Atrás de mim, já haviam se juntado dezenas de outras pessoas. A fila era grande. O gringo tinha mesmo sumido, mas os olhares de muitos ainda o procuravam, nervosos.  
“No dia de sua première, sete de maio de 1824” — pensava eu comigo, enquanto olhava as pessoas entrando ––, “o Kärntnertortheater em Viena estava tão lotado quanto a Sala São Paulo estará daqui a dois meses, quase duzentos anos depois. Quase que posso ver o mestre envelhecido no palco, de costas para o público, sendo chamado pela jovem contralto Caroline Unger para que se virasse, pois a plateia aplaudia com ardor. Como ele não podia ouvir, tinha de ver todas aquelas palmas absolutamente jubilosas. As cinco ovações que o público lhe dera naquela noite era algo nunca antes visto para alguém que não pertencia à família real e nem mesmo era funcionário do Estado. Mas aquela noite não terminara ali. Depois da apresentação, o velho mestre, muito comovido com tamanha acolhida, foi acompanhado de volta à sua casa na Schwarzspanierstrasse por alguns amigos, que lhe mostraram, então, com mais do que um certo receio, os números da conta do concerto. Quando o mestre leu o que restara para ele após o pagamento do teatro, dos músicos e de todos os copistas, caiu duro, desmaiado. Os amigos ergueram-no e o deitaram no sofá, onde ele foi encontrado na manhã seguinte pelos criados, ainda nas roupas do concerto”...
Passei a porta de entrada, e agora me via muito próximo dos caixas, atrás somente da moça baixa e da mulher obesa, que conversavam sobre uma nova loja de sapatos que havia aberto no bairro onde moravam. Eu já ouvia no fundo da minha mente os primeiros compassos do Allegro Assai da grande sinfonia e pensava nos meus mais de vinte anos de espera por aquele momento. As duas mulheres, enquanto discutiam sobre os modelos dos sapatos da loja, ainda olhavam para trás em busca do gringo. De súbito, a mulher obesa voltou-se para mim e perguntou:
–– Você viu para onde ele foi? Será que ele foi embora?
Eu respondi que achava que ele de fato tinha ido embora. Não o vira mais.
         O carequinha passou diante de nós com seus ingressos e foi embora assobiando uma melodia popular. Neste momento, o caixa do lado direito se levantou e veio em nossa direção com uma expressão consternada.
–– Gente: sinto muito, mas os ingressos estão esgotados — disse ele olhando para mim e para os outros na fila.
Silêncio geral.
–– Como?! Não pode ser! São dez e quinze! –– berrou então a moça
baixa, indignada.
Eu mesmo senti um frio me atravessando a espinha dorsal. Como podiam os ingressos esgotar-se em apenas quinze minutos?
         O homem do caixa agora caminhava ao longo da fila, conversando com as pessoas.
–– A maior parte dos ingressos está sempre reservada aos assinantes, por isso restam muito poucos assentos livres, que logo são preenchidos — explicava ele. — As vendas por telefone e pela internet começaram também às dez horas, e o número de ligações foi muito grande. Há também outros pontos de venda de ingressos além deste aqui, que também receberam muita gente nestes quinze minutos. Sinto muito.
O homem era amável e percebia a frustração e a indignação no rosto de todos nós.
A frustração e a indignação da moça baixa e da mulher obesa pareciam as mais intensas de todas –– afinal de contas, foi na vez delas que os ingressos se acabaram. Se tivessem chegado à fila meia hora antes... Ainda não podiam crer no que acontecia ali, e vociferavam e bradavam de maneira quase bestial com os caixas da bilheteria.
–– Eu vim de muito longe para isso aqui! –– vociferava uma.
–– Você imagina o tempo que eu perdi e o custo que eu tive para chegar aqui a esta hora, num dia de semana? –– bradava a outra.
Não havia o que fazer. Ponto final.
Enquanto me encaminhava em direção ao carro, de cabeça baixa, pensei no sujeito alemão. Ele, diferentemente de mim, estaria lá dois meses depois para ouvir a grande música de Beethoven.


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