quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Viagem no trem da saudade

Por André J. Gomes.


Naquele tempo, entre milhares de prédios e garagens e já dezenas de milhões de almas circulando pelas ruas sobre seus pés ou em veículos de motores barulhentos, havia lá pelo meio da cidade grande uma estação de trem. Dali partiam todas as tardes, quase à noitinha, duas composições de ferro e sonhos: uma às cinco e quarenta e dois e outra às seis e oito, como uma segunda chance a quem perdesse o primeiro.

Seus passageiros eram uma pequena multidão de trabalhadores afoitos, daquela gente que passa o dia na lida e à noite se agarra aos livros e aos planos. Talvez hoje nenhum deles se lembre, mas quase todos estavam ali de chegada no começo da vida. E chegavam lá aos poucos, todos os dias, à noitinha, num trem que os levava a outro jeito de existir.

Expressos, o trem das cinco e quarenta e dois e o trem das seis e oito partiam da metrópole e só paravam longe, numa cidade pequena habitada por estudantes, donas de casa e o resto do mundo. A viagem durava uma hora e a vida inteira. Porque àquela hora, uns sobre os bancos vermelhos de plástico duro, outros sentados no chão forrado de jornal e outros em pé, se equilibrando no embalo impetuoso de seu vagão, a vida começava e acabava de novo à noitinha.

É possível que hoje nenhum deles se lembre, mas o trem seguia seu rumo alheio a tudo. A despeito das pedras que lhe atiravam da rua os que têm sede de morte, a vida era mais forte, vencia sempre. Apesar das balas perdidas, do custo de vida penoso e de tanta coisa lá fora e cá dentro de cada um, o trem seguia em frente como o tempo. É que o trem era o último sopro de vida do dia. Rompia a tarde rumo à noite e ao para sempre, todos os dias.

O trem seguiu assim por muito e muito tempo, levando a bordo o passado e o presente e o futuro de cada um. Quando um dia parou sem mais o quê, seus passageiros seguiram seus rumos a bordo de outros sonhos. E em cada um deles encostou um vazio de plataforma à espera. Um espaço eterno, um terreno baldio na cidade de suas lembranças. Um lugar guardado para o trem que um dia, quando chegar a hora, sabe-se lá quando, nos levará de novo, juntos, à noite de nosso encontro eterno.

Talvez nenhum deles se lembre, mas eu também estava lá. E hoje, toda tardinha, às cinco e quarenta e dois e às seis e oito, a saudade me chega e me parte. Como o trem que em nosso tempo cortava a cidade e a vida rumo ao lugar em que estamos agora.

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