segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Brincando com a língua - Diante de um angu-de-caroço

Por Therezinha Hernandes.
  
Uma das primeiras expressões de cuja origem tratamos foi “acabar em pizza”. Aberto o apetite, continuaremos no ramo culinário do português, dando uma canja ou uma colher de chá para que ninguém coma com os olhos nem chore as pitangas, pois quem tem vocação para arroz de festa não quer saber de encontrar caroço no angu. Se isso parece o samba do crioulo doido (veja aqui), melhor explicar logo.

Por ser uma bebida suave, muitas vezes estimulante e que pode ser preparada com plantas medicinais, o chá sempre foi oferecido a doentes. Os mais fragilizados o recebem às colheradas. Também é reconfortante, bom de beber no frio para esquentar e no verão para refrescar. Assim, dar uma colher de chá tanto possui o sentido de facilitar a vida de alguém, como se traduz numa expressão de carinho ou de ajuda a quem está de alguma forma necessitado.

Dar uma canja pertence à linguagem dos músicos, e não da culinária. Significa tocar de graça num determinado local (bares, casas noturnas em geral), mas também é habitualmente usada para designar o ato de tocar de improviso. Consta que a locução surgiu nos idos de 1960, quando o Clube dos Amigos do Jazz, entidade que reunia cerca de trezentos fãs desse gênero musical, passou a ser conhecido pela sigla CAMJA. Como o clube deixava os instrumentos musicais à disposição de seus frequentadores, os músicos diziam que iam “tocar no CAMJA”, e logo a expressão se transformou em “dar uma CAMJA”, até ganhar a forma atual.

Dizer que algo é “canja de galinha” não tem nenhuma relação com “dar uma canja”. A canja é um prato de fácil digestão, e por isso é a refeição mais comumente servida a doentes. Dessa maneira, tudo que é fácil, simples ou muito prático passou a ser chamado de “canja” ou “canja de galinha”.

Comer com os olhos normalmente expressa, de um lado, um desejo incontrolável, a inveja ou a cobiça de alguém; de outra parte, pode significar um olhar de reprovação, de ira, mas sem partir para a agressão física, como na frase “Ela parecia querer me comer com os olhos, de tanta raiva”. Mas a locução “comer com os olhos” vem mesmo da situação de ver uma iguaria e não lhe poder apreciar o sabor, independentemente do motivo. Denota um desejo insatisfeito, e vem da Roma Antiga, quando existia uma cerimônia religiosa consistente na oferta de um banquete em honra dos deuses, mas nenhum dos celebrantes podia tocar na comida – só podiam mesmo olhar. Outra expressão equivalente e bem popular no Brasil é “ver com os olhos e lamber com a testa”, ou seja, sem poder alcançar aquilo que se almeja.

Chorar as pitangas é mesmo uma analogia com a cor dessa fruta, cujo nome vem de pyrang, que em tupi quer dizer “vermelho”. Desse modo, chorar as pitangas significa chorar muito, até os olhos ficarem vermelhos.

Arroz de festa já é uma expressão mais alegre. Em várias culturas, o arroz simboliza a fartura – por isso ainda se mantém a tradição de jogar arroz nos noivos, após a cerimônia de casamento, para desejar uma vida de prosperidade. Mas o nosso “arroz de festa” designa aquela pessoa que não falta a nenhuma reunião, solenidade... enfim, qualquer ocasião. Arroz-de-festa é o nome dado em Portugal ao arroz-doce, sobremesa muito apreciada por fidalgos e plebeus portugueses, e também pelos brasileiros desde o século XVI. Entre os portugueses, esse doce era presença obrigatória nas festas – daí o seu nome, e também a analogia com aquela pessoa que se faz presente em todo e qualquer evento social.

A expressão angu de caroço demanda algumas explicações a mais. Denota algo difícil, complicado, insolúvel, ou uma situação constrangedora. O Dicionário Aurélio registra também seu uso como sinônimo de intriga, fofoca, mexerico.

Angu é uma papa feita de farinha de milho (fubá), que deve ser misturada primeiramente à água fria, para depois ser levada ao fogo, mexendo-se constantemente, caso contrário o fubá cria grumos (pelotas ou “caroços”) difíceis de serem desfeitos.

O nome angu origina-se da palavra àgun, do idioma africano fon, e designa uma papa de inhame sem tempero. No Brasil, refere-se a papas feitas com farinha de mandioca, milho ou arroz, as quais eram acompanhadas por miúdos de carne de vaca ou de porco. Com o tempo, a palavra angu passou a ser utilizada apenas para as papas feitas com fubá, enquanto as papas feitas de farinha de mandioca passaram a ser chamadas de pirão.

Quando o milho foi levado para a Europa, os italianos criaram um angu mais consistente, e assim surgiu a polenta, servida ora com molho, ora grelhada ou frita.

De início, o angu era simples, feito somente com fubá, água e sal, sem carnes ou outros ingredientes, para alimentar os escravos. As escravas da cozinha, porém, davam um jeito de esconder pedaços de carne ou miúdos para reforçar a comida dos companheiros da senzala, e daí surgiu outra expressão: “debaixo desse angu tem carne”, ou ainda “tem peixe nesse angu”, para representar algo escondido ou de que se deve desconfiar.


Apesar de o angu, por ser preparado com ingredientes baratos, ser “comida de pobre” e de escravos, a adição de temperos e carnes o faz muito saboroso. Desse modo, como nos informa o pintor, desenhista e professor Jean-Baptiste Debret (ou De Bret) em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, o angu passou a frequentar a mesa dos senhores, os quais faziam piadas a respeito da iguaria, para resguardar as aparências, seu orgulho e seu amor-próprio – mas não deixavam de se regalar com ela. 

Um comentário:

  1. Therezinha, su blog é realmente muito rico (em espanhol, significa delicioso) e exquisito (em espanhos, muito, muito gostoso!!) Gostei muito, e eu, que gosto da tematica, diria: "saco vazio nao para de pé" ou sera que "estou falando abobrinha?" Obrigada!

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