Por João Pinheiro.
Manhã
poeirenta, sol clareando as brechas, muvuca nas ruas, quando os trabalhadores
esfregam nervosamente os olhos e esperam o transporte público. Todas as manhãs
o tumulto de cabeças vai agitado, seguindo pastosamente. O que podemos fazer? As
baratas e ratos erram também pelas calçadas rumo às tocas, nos lixos
encanteirados.
Meus
olhos, passados de um século, salgados, vermelhos de fumaça, evitam que eu
tropique e me estrumbique na calçada esburacada. Tanta vida, tanta coisa mudou
e tudo continua igual, meu mundo que levo comigo nas calças chumbadas. Canetinha
no bolso e caderno no sovaco, sigo.
Na
travessa da Avenida Itaquera, Caronte tem olhos vidrados de crack e os heróis
desfilam imundos, peles de bronze, carregando carroças cheias de coisas que
ninguém mais quis. É possível ainda ver um leve sorriso nos lábios dessa gente.
Carolinas, Solanos, Atlas subdesenvolvidos das quebradas, carregando o mundo
que não os vê, mas ai dos que não os veem. Que força estranha e invisível nos
move? Povo errando a vida no concreto. Desloco para o lado das casas sem
reboco, lá estão os meus. Ideia de Mágico de Oz aqui não cola, mau exemplo, sim.
No extremo o que predomina é o risco, o abismo a um passo de distância, mas que
a maioria aprende a se safar na marra. Vira pro lado de lá, remenda aqui que
dá, tá ruim, mas tá bom... Havia um erro nisso tudo, um buraco na prosa. Ia
tentar resolver quando eu sentasse pra desenhar.
Caminhava
conversando com minha mulher, víamos os mesmos rostos de todos os dias, eram 6h20.
Sinto certo conforto em ver rostos conhecidos, postes repetidos... Íamos falando
atropeladamente, entusiasmados por ideias que pulam pra fora e se perdem no ar,
sem aquelas deixas de fala das peças ruins, tudo ao mesmo tempo. Em frente à
escola onde ela trabalha, nos despedimos. Girei os calcanhares e recomecei a
caminhada. E o erro mencionado, qual seria?
Tinha
mirado uma esquina pra desenhar, na volta e fui direto pra lá. Sentado na
calçada, armas em punho, a rabiscação ia começar, mas não antes de dar uma boa
espiada ao redor. Descobri a resposta: quando você olha longamente as coisas, o
que parece doente e apagado, à primeira vista, amadurece e nos faz conceber
mais profundamente o encanto que liberta.
Depois
lembrei deste trecho de Cartas a Théo,
do Van Gogh (2002, p. 279):
“(...) Ao
estudarmos a arte japonesa, veremos então um homem incontestavelmente sábio,
filósofo e inteligente, que passa seu tempo como? Estudando a distância da
Terra à Lua? Não. Estudando a política de Bismark? Não. Apenas estudando um
talo de capim.
Mas este talo de capim leva-o a desenhar todas as plantas, a seguir as
estações, os grandes aspectos das paisagens, enfim, os animais, e depois a
figura humana. Assim ele passa a sua vida, e a vida é muito curta para fazer tudo isso (...)."
João Pinheiro é Ilustrador, artista plástico, autor de histórias em quadrinhos e infantis e professor, com livros publicados por várias editoras. É autor de Kerouac, (2011, editora Devir Livraria) e O espelho de Machado de Assis em HQ (2012, Mercuryo Jovem, em parceria com Jeosafá Fernandez Gonçalves). Do Urban Sketchers, em parceria com Jeosafá tem vários livros infantis publicados, dois dos quais selecionados pela SEE-SP: Faz de conta no jardim (2010, Mercuryo Jovem) e Um barco, um passarinho (2010, Plêiade). Publicou quadrinhos nas revistas: Front (Brasil), Graffiti (Brasil), Hipnorama (Argentina), Inkshot (EUA). Diário gráfico: http://vagulino.tumblr.com/ - Site: http://jpinheiro.com.br/.
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