segunda-feira, 14 de julho de 2014

BRINCANDO COM A LÍNGUA: NÃO MALTRATE O PORTUGUÊS - Quando uma língua morre, a cultura também morre

Por Therezinha Hernandes.

A proposta desta coluna, desde o início, é discorrer sobre a gramática e os usos do português.

É uma tarefa prazerosa e inglória ao mesmo tempo; adoro o que faço, amo estudar a estrutura das línguas (da nossa e de outras), mas sei que as pessoas ou abominam ou desprezam a gramática, haja vista que a encaram, na maioria das vezes, como um amontoado de regras chatas que só inibem os falantes.

Assim, mostrar que a gramática não é puramente impositiva se torna uma trilha árdua... Mas quem disse que sou de esmorecer?

Costuma-se associar a palavra gramática à chamada norma culta da língua, ou seja, um conjunto de regras, de padrões, mais ou menos impostos por estudiosos ou acadêmicos, sem levar em conta os usos correntes da língua pelos seus falantes.
Essa é a gramática normativa, causadora de arrepios aos estudantes e de engulhos aos linguistas.

Porém, a gramática não se restringe a esse papel. Nas suas diversas aplicações (normativo, histórico, comparativo, funcional, descritivo), ela  estuda os aspectos estruturais da língua; em outras palavras, a morfologia e a sintaxe. A morfologia estuda a forma das palavras, sua composição; a sintaxe estuda as relações entre as palavras.

Sob esse prisma, ela é ferramenta importante para os estudos linguísticos relativamente aos usos de uma língua pelos seus falantes.

Mais do que isso, a gramática como estudo das estruturas permite a obtenção de conhecimentos e a análise das informações coletadas também acerca de línguas que não possuem registro escrito (isto é, que são apenas faladas), adquirindo, então, relevo para a preservação da linguagem, especialmente se considerarmos a imensa quantidade de línguas em risco de extinção pelo mundo.

Uma dessas línguas é o N/u, falada por apenas uma dezena de pessoas na África do Sul. No período do apartheid, os povos sul-africanos foram obrigados a se expressar em africâner, para que os dominadores brancos pudessem compreender.

O vídeo abaixo retrata falantes do N/u, com algumas explicações sobre sua fonética. As legendas estão em inglês (se alguém versado nessas tecnologias puder colocar legendas em português, agradeço), e por isso vou transcrever algumas passagens importantes:

- “Sempre que nos reuníamos, falávamos em N/u; discutíamos nossos problemas em N/u. Nós ríamos em N/u...” (A língua é parte dos elementos que fazem de um povo uma nação; poder se expressar na própria língua é uma afirmação do espírito nacional. Proibir seu uso é o caminho para extinguir a cultura de uma nação.)

- “Quando um de nós [os mais velhos, poucos, ainda falantes do N/u] morre, a língua também morre. Nós cobrimos os mortos com terra, mas a língua não é como uma planta, que revive.”  (A língua faz parte da cultura de um povo. Quando uma língua se extingue, leva com ela a cultura que caracteriza esse povo.)


Diferente é o caso do crioulo cabo-verdiano, visto que há um projeto de torná-lo língua oficial de Cabo Verde paralelamente ao português. Porém, existem algumas dificuldades para que isso aconteça. Por exemplo, assim que uma conversa se torna formal ou oficial, ainda se dá preferência ao português, que também prevalece nos escritos, principalmente documentos oficiais; não havia para o crioulo a modalidade escrita da língua; além disso, coexistem nas ilhas do arquipélago várias formas dialetais a serem consideradas. Ainda que a oficialização do crioulo cabo-verdiano possa demorar, em face dos problemas encontrados, há uma forte disposição governamental para que as variantes do crioulo sejam estudadas e registradas. O estudo de suas estruturas gramaticais, assim, visa à preservação da língua falada como forma de manutenção da cultura e da identidade nacional.

Nesse enfoque, a gramática exerce papel relevante para os estudos linguísticos visando à preservação de línguas que, ou não apresentam registros escritos, ou cujo emprego por seus falantes foi impedido em virtude de dominação político-social. E, mesmo quando se trata de uma língua extinta, a gramática integra o conjunto de ferramentas empregadas na sua recuperação.

Analisando a gramática pelo ângulo de suas contribuições para a preservação das línguas, espero conseguir modificar a imagem de que ela tolhe a expressão oral, e, desse modo, resgatá-la do limbo a que vem sendo injustamente relegada.

Um comentário:

  1. Querida,
    Que legal a sua coluna desta semana! Parabéns, TT. Para os leitores que quiserem saber mais sobre crioulo cabo verdiano, e sua transição para o ensino recomendo: 'Língua Cabo-Verdiana: da oficialização à transição para língua de ensino', de Isis Cleide da Cunha Fernandes, disponível no site portaldoconhecimento.gov.cv
    E vamos em frente!!! Adorei conhecer o N/u.
    Beijos

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