quinta-feira, 24 de julho de 2014

BRASIS, PORTUGAIS E ÁFRICAS - Sem piedade

Por Susana Ventura.
 Pietà' de Michelangelo

Cedo, numa das manhãs da semana, ouvia distraída o noticiário pela TV, andando pela casa, quando uma notícia me fez parar e ir para junto da tela: em Sacramento, um pequeno município mineiro com 2500 habitantes, um jovem havia entrado na igreja católica local  e tinha destruído, a golpes de bastão, todas as imagens religiosas. Perguntado sobre o motivo da ação, o jovem teria dito que não acreditava em nada daquilo e, portanto, destruíra as imagens.

Fiquei impactada e resolvi dar total atenção à reportagem que se seguia. Primeiro vi uma senhora sendo entrevistada. Ela dizia que aquela igreja era o centro da vida de grande parte da população local. Ali gerações de pessoas haviam sido batizadas, se casado, batizado seus filhos. Minutos depois,  corte e a continuação da reportagem escutando o líder religioso que falava pela igreja a que pertencia o rapaz e que, menos veementemente do que seria esperado, recomendava respeito e dizia que o ato era reprovável. Novo corte previsível e a volta da imagem para a bancada onde os jornalistas, a cada manhã, fazem o seu trabalho. 

Desta vez, o comentário feito pelo profissional que costuma primar pela tentativa de ser simpático me deixou absurdada. Ele disse que realmente era preciso ter respeito porque uma pessoa dessas qualquer hora pode ir para o Vaticano, por exemplo, e fazer uma barbaridade como aquela com a Pietà. E, olhando fixamente para a câmera e dali, penso que imaginava olhar diretamente nos olhos do possível espectador, ele completou com a pergunta: ‘Já imaginaram, alguém destruindo a Pietà?’

Pois bem, fiquei olhando nos olhos dele também.

Será que não bastava não o que tinha acontecido? A vida daquela comunidade tinha sido brutalmente alterada, parte das referências daquelas pessoas estava perdida, porque a destruição causada não poderia ser reparada. E o sujeito me dizia que precisávamos ‘ter educação’ senão qualquer hora isso podia acontecer com a Pietà? Tive vontade de sacudi-lo pelas abas do paletó. Para aquelas pessoas a Pietà fora destruída sim. A Pietà da vida deles, que é vivida perto de nós, tinha sido despedaçada.

Será que eu entendi corretamente? Se fosse uma obra de arte europeia, com pedigree portanto, aí sim seria o cúmulo? Uma coleção de  imagens dos séculos XIX  e XX sem autoria investigada pela reportagem, não basta? E temos que ser ‘civilizados’ para tentar garantir que um dia um brasileiro não danifique algo que realmente interessa, uma obra de Michelangelo, entronizada na Basílica de São Pedro, no Vaticano?
Em que pensamos quando enunciamos o tipo de argumento que o jornalista enunciou? Com que cabeça nós, brasileiros, nos pensamos hoje, em 2014. Quais as nossas referências?

Importante é o que tem valor artístico em moldes europeus. Desimportante ou menor é o que não tem valor artístico nos mesmos moldes.

E a afetividade, a fé, a vida pessoal dos que vivem em Sacramento? Isso não conta?

Aparentemente é pequena questão, mas apenas aparentemente. Ou não?

Nessas horas, me dá vontade de receitar ao profissionais da mídia a leitura de bons autores que pensaram e pensam sobre o Brasil, ou pedir para que tentem pensar  um pouco sobre o país antes de falar para milhões de pessoas. A cabeça pode doer um pouco pelo esforço, mas bem, é o preço a pagar (e é barato).

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