segunda-feira, 2 de junho de 2014

BRINCANDO COM A LÍNGUA: NÃO MALTRATE O PORTUGUÊS - Quem sai da conversa vira assunto (1)

Ouça aqui o Samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa.
Por Therezinha Hernandes. 

Depois do surgimento das redes sociais, há quem não viva sem elas. Publicam-se fotos dos bichinhos de estimação, do almoço, da cor do esmalte das unhas, do sapato novo. A cada segundo vem uma nova “atualização”.

E, como não poderia deixar de ser, logo vêm as piadinhas: “O que seria de mim sem a rede social? Já pensou se eu tivesse que telefonar para quinhentas pessoas só para avisar que estou indo dormir?”.

Também vêm à baila discussões mais sérias. De um lado, estamos permanentemente expostos como numa vitrine, o que pode representar um perigo para a segurança pessoal, especialmente de crianças, jovens, adultos incautos.
De outra parte, sentimo-nos cobrados a aceitar o bombardeio de informações, sem termos noção exata de sua necessidade ou utilidade, e acabamos sobrecarregados e estressados.

Muito se critica o uso abusivo dos celulares, que acabam substituindo as relações fisicamente mais próximas. É muito desagradável estar falando com alguém, e a pessoa nos interromper para responder uma mensagem de texto que nem sempre é de trabalho, ou nem mesmo urgente.

O abuso do celular não altera apenas as regras da boa educação. Além desse inconveniente, a premência de enviar para conhecimento de outros a última novidade, a foto mais recente, de “compartilhar o status”, está matando o português (outras línguas também, mas o português é o que nos interessa aqui).

Teclado na tela do celular, teclas pequenas no aparelho, ou simplesmente a pressa ou preguiça de escrever uma palavra inteira estão gerando confusões, habitualmente atribuídas, por seu turno, a aplicativos como autopreenchimento, autocorreção ou como quer que se chamem.

Algo que chama a atenção é o sumiço das letras “r” e “u” finais:

- “Se eu fo aí, vo quere um pedaço desse bolo” (“Se eu foR aí, voU quereR um pedaço desse bolo”).

E também este diálogo surreal:

- “Jho Leno, onde sua mãe arrumo esse nome” (“... arrumoU...”, e faltou o ponto de interrogação)
- “Porque” (“Por quê?”)
- “Nunca vi”
- “Ah, é de um canto, o Jho Leno dos bilto” (“Ah, é de um cantoR, o John Lennon dos Beatles”)
Além da grafia errada, faltam os sinais de pontuação.

Outro diálogo exemplar:

- “Que eh esse bagui de de OK indet que ses fala” (Novamente, faltando pontuação, e também com erro de concordância verbal.)
- ???
- “de ok indet – ta todo mundo vendo” (... todo mundo ESTÁ vendo)
- Ah! “The Walking Dead”...
(Que é esse bagulho de The Walking Dead de que vocês falam?”)

Todos nós usamos gírias em ocasiões informais, omitimos alguns sons ou esquecemos algumas preposições na fala quotidiana, mas na escrita precisamos ter mais cautela, pois do contrário a comunicação será falha.

Como se viu nos exemplos dados, a pontuação é essencial para dar ao texto escrito a correta entonação: a falta do ponto de interrogação, naqueles casos, não nos permite compreender que se trata de uma pergunta.

Muito diferente é o caso de Adoniran Barbosa (pseudônimo de João Rubinato – clique aqui), cujas letras de músicas buscavam representar a fala popular de São Paulo:


O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Nós fumos não encontremos ninguém
Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez nós num vai mais
Nós não semos tatu! (2x)

No outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu desculpas mais nós não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta

Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá
Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância,
Assinado em cruz porque não sei escrever"

Arnesto


Ou, ainda, a recriação de poemas famosos reescritos de forma a representar a fala dos imigrantes italianos da cidade de São Paulo, na obra de Juó Bananére (para saber mais sobre Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juò Bananère, clique aqui):

Ouça aqui Juó Bananére.
Versos

Ficas n'un ganto da sala
P'ra fingi chi non mi vê,
E io no ôtro ganto
Stô fingino tambê.

Ma vucê di veiz in veiz
Mi dá una brutta spiada,
E io tambê ti spio
Ma finjo chi non vi nada.

Cunversas co Bascualino
P'ra mi afazê a gelosia,
Ma io p'ra mi vingá
Cunverso tambê c'oa Maria.

Tu spia intó p'ra Maria
Con ar di querê dá n'ella;
P'ra evitá quarquére asnêra
Si afasto i vô p'ra gianella.

O firmamento stá scuro
I na rua os surdato apita,
Inguanto nu ganto da sala
Tu fica afazéno "fita".

Marietta non segia troxa,
Non faccia fita p'ra gente,
Perchê vucê quêra ô non quêra
Io ti quero internamente.
In: BANANÉRE, Juó. La divina increnca. 2.ed. Pref. Mário Leite. São Paulo: Folco Masucci, 196

Tanto Adoniran Barbosa como Juó Bananére buscavam representar na escrita os sons da fala do paulistano e do imigrante italiano, porém sempre indicando a sonoridade por meio da acentuação, e também a entonação das frases com os sinais de pontuação.


É claro que, numa situação de informalidade, podemos também representar os sons da fala – mas, por favor, sem maltratar o português...

2 comentários:

  1. TT,
    Adorei a coluna e a lembrança do Adoniram e do Juò... Pois é, há tanta criatividade borbulhando na rede - eu mesma me divirto muito com a internet, uma vez que é raro o momento em que posso conviver com os amigos ao vivo. No entanto, os maus tratos ao português me irritam. E o que dizer dos próprios portais de notícias que cometem erros terríveis? 'Eu acho que essa gente/ precisava em vez de inglês/ aprender um pouco mais de português/ ok! ok!' (lembra-se desta canção?). Beijos Susana

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    1. Obrigada pela lembrança, Susana!!

      Um outro exemplo é o samba "Orora", de Gordurinha (nome artístico de Waldeck Artur de Macedo), gravado por Jorge Veiga e também por Jards Macalé.
      A língua é dinâmica - e não deve mesmo ficar estagnada, senão morre-, e por isso sempre se modifica. No entanto, estamos assistindo hodiernamente a uma involução, e não apenas do nosso amado português.
      O maior perigo das reduções já foi apontado por George Orwell (creio termos conversado sobre esse assunto, não?). Acho até que vou falar disso na coluna da próxima semana.

      Obrigada por acompanhar a coluna!!! Suas intervenções são sempre muito oportunas!
      Beijos também.

      TT

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