quinta-feira, 29 de maio de 2014

VARA DE FAMÍLIA - Caso 5: Negócios ilícitos

Em meio à audiência, há até lugar para uma apostasinha básica.
Por Inês Regina Pereira.

A audiência já se prolongava por mais de meia hora, e nada de o réu se manifestar quanto ao pagamento da pensão alimentícia dos filhos e da esposa pela conversa torta dos advogados de ambos, aparentemente abandonados.

Nem réu nem autora ousavam se dirigir à juíza, que também não contribuía muito ao interrogar os defensores das partes. "Mas se o seu cliente pagava tudo direitinho, por que deixou de efetuar os depósitos?", indagava ela ao advogado do réu, que aproximava o ouvido dos lábios de seu cliente e o ouvia sussurrar qualquer coisa.

A resposta vinha sempre na forma de enigma, que se não era decifrado por nem mim nem pela Meritíssima, mas que era imediatamente compreendido pela autora da ação, que orientava seu defensor, também por cochichos, a replicar em enigma ainda mais intrincado.

Pela feição da juíza, ela estava gostando do jogo, que se  parecia cada vez mais com aquelas rodas que quando crianças fazemos para brincar de adivinha.

A Meritíssima anotou qualquer coisa a lápis no tampo branco de sua mesa, e piscou para mim. Entendi perfeitamente o significado do sinal, e rabisquei também uma frase num papelinho de meu bloco de notas.

Então, calmamente, ela, a juíza, abriu um sorriso e proclamou: "Vamos, meu filho, desembucha!".

O réu tomou a palavra depois de consultar com os olhos seu advogado, que assentiu com um movimento de cabeça: "Excelência, parei de pagar porque minha fonte de rendas secou".

A juíza fez meio sorriso com o canto da boca, e devolveu na mesma moeda: "Pode-se saber por que a fonte secou?".

O advogado do réu entortou a cabeça num gesto que significava tanto "fale", quanto "lavo as mãos". O réu retomou a palavra: "Porque eu estava retido, Meritíssima".

A juíza bateu com delicadeza a ponta do lápis sobre o que escrevera no tampo de sua mesa, sorriu e piscou para mim novamente e... corrigiu o réu: "'Dedito', meu filho, não 'retido'".

O réu concordou com a correção de português.

"Detido por que razão, pode-se saber?", tornou a magistrada.

O réu, num gesto de tédio, olhou para seu advogado. Nesse momento, pensamos que ia xingar alguém. Mas não. Levantou-se, abriu os braços, baixou-os em expressão de profundo desânimo e respondeu olhando para o vazio: "Negócios ilícitos, Excelência!".

Foi assim que perdi a aposta e tive que pagar o almoço da juíza. No tampo de sua mesa  ela escrevera: "Estava preso". No papelinho que eu trazia na mão estava escrito: "Faliu a empresa da família".



Inês Regina Pereira (codinone) é escrevente do poder judiciário paulista. Reuniu durante anos apontamentos sobre audiências na Vara de Família em que trabalhou até se  aposentar no ano de 2010. Para preservar pessoas e instituições, ela embaralha um pouco os nomes e as referências. Todavia, tudo que aqui se publicar é com base em fatos reais. Caso alguém se sinta prejudicado, solicitamos o envio de reclamação à redação, e ela será prontamente enviada servidora aposentada, que é responsável pelo que escreve e terá prazer de responder em público ou privadamente os comentários. Escreve todas as quintas-feiras para o blog da editora Nova Alexandria a coluna Vara de Família.


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