Por Inês Regina Pereira.
A ré ingressou a sala de
audiência furiosa, acompanhada de seu advogado. Era ré da ação de restituição de guarda de uma
criança já com 4 anos de idade. Era a avó, louca da vida porque a filha
decidira recorrer à justiça para tirar-lhe a neta.
– Iiiiiiinnn DIG na! – berrava a anciã,
toda senhora de seus direitos.
– Acalme-se, minha senhora –
proferiu a juíza que, para acalmar as sessões, deixava um disco de música de
elevador tocando no CD player de sua mesa, um pouco mais alta do que as outras,
para deixar claro quem é que mandava ali.
– InDÍgna – continuou a velhota,
nem se dando conta de quem a mandara calar-se.
Prestando atenção mais ao som
clichê de seu disco de calmaria do que à ré, a juíza insistiu:
– Acalme-se, minha senhora. E
sente-se.
Agora que ela tamborilava a mesa
com as unhas compridas e esmaltadas em vermelho, o advogado da ré, considerando
delicada a situação, apertou o braço de sua cliente, fê-la sentar-se e
calar-se. Mas tão logo se encontrou acomodada, a velha não tardou a recomeçar,
de enfiada:
– In DÍg na. In DÍg na. In DÍg na.
In DÍg na. In DÍg na!
Do outro lado da mesa, a autora
da ação, sua filha e mãe da menor em disputa, mantinha-se impassível, com seu
advogado de olhos fechados, fingindo que se concentrava, mas que na verdade
cochilava, pois viera de uma noitada daquelas.
– In DÍg na, Meritíssima – bateu
as palmas das mãos na mesa e levantou-se a velha cheia de seus direitos. – Esse
minha filha é indigna. Se enroscou com o namorado aos treze anos de idade, teve
filho aos catorze, eu que que cuidei da menina, porque ela não sabia nem limpar
fraudas e agora, que a menina já está até grandinha, quer leva-la de mim sem
mais aquela. A mim é que não faz de besta, não, Meritíssima, a mim não.
A velha respirou fundo, fechou os olhos e sentou-se calmamente. A juíza, que nem tinha iniciado a
audiência formalmente, aproveitou a deixa e falou, petelecando com a unha do
indicador uma ponta de grafite que quebrara de sua lapiseira:
– Escrevente, anote aí o que a ré
falou – e voltando-se para a autora da
ação, ergueu as sobrancelhas indagativamente.
A autora não se deu por
desentendida:
– Quero minha filha, doutora...
– Meritíssima – corrigiu seu
advogado, que acordara do cochilo com um
pequeno tremelique.
– Isso – corrigiu-se a autora –.
Meritíssima, agora estou trabalhando, casei com meu namorado, estamos morando
juntos e queremos nossa filha.
– Innnnnnn DIIIIIIIIGGGG
nnnnaaaaa!
Era a mãe da autora, mostrando o
punho cadavérico para a filha, que não piscou, nem se mexeu do lugar, situado
exatamente à frente de sua mãe.
E nessa impassibilidade, proferiu
de uma só vez:
– Quero minha filha de volta,
porque é minha filha, não dela, e porque
meu irmão está molestando minha menina, todo mundo sabe.
A Meritíssima deu uma petelecada tão violenta no grafite que este fui parar não sei onde. E saltando da cadeira exaltou-se:
– O seu filho anda fazendo o que
com a sua neta?
– É, Meritíssima, mas não é culpa
minha, quando a gente está longe, não sabe o que os filhos fazem.
A juíza ergueu-se da cadeira, foi
até a janela, tomou um ar ou pensou no que fazer, e saiu-se com esta:
– E a senhora, dona autora, o que
fez que não tomou providência, se sabia que seu irmão molestava sua filha?
– Processei os dois, Meritíssima,
minha mãe e meu irmão.
– É verdade, dona ré?
– Não vou negar, Meritíssima...
– E...?
– Até agora nada, Meritíssima –
respondeu a autora, torcendo a boca numa séria reprovação do nosso belo
judiciário.
– Onde é que estava a senhora,
dona ré, que permitiu uma calamidade dessas?
– Presa – respondeu ligeiro a ré.
A juíza tomava água, e foi nessa
hora que ela engasgou, desandou a tossir e o copo virou sobre o processo.
– Preza! – despôs-se a
Meritíssima – . Como assim, “Presa”! Presa por quê?
As palavras da Meritíssima saíam misturadas
a jatos de água e à tosse compulsiva. E foi nessas condições que ela ouviu as
palavras finais da ré:
– Rôbo!
– Rô-bo? Assim sem o “u” no meio
da palavra?
Nessa hora a filha perdeu a
timidez a finalizou:
– Minha mãe não passa de uma ladra,
Meritíssima. Surrupiou até o “u” da coitada da palavra.
Na saída da audiência, cujo desfecho todos podem deduzir, tendo restado apenas a Merítissima e a escrevente na sala, aquela disse a esta:
– Isso às vezes se parece com teatro...
Ao que respondeu, respeitosamente a escrevente:
– Teatro de comédia, Meritíssima. Teatro de comédia... E se me permite, data venia, teatro bufo!
A juíza espremeu as pálpebras, fechou a pasta do processo, entregou-a à escrevente e proferiu a sentença:
– Caso encerrado.
Arnaldo B. Rosário Rosário (Via Facebook): Li e gostei da narrativa da causa forense, embora nunca tenha ido de ressaca em audiência. Rsrsrsrsrs
ResponderExcluirLúcio Sanches (Via Facebook): Amigo(a) de Arnaldo B. Rosário Rosário
ResponderExcluirQuem se enroscou e não sabia "limpar fraudas" foi a velhinha. kkkkk