quinta-feira, 1 de maio de 2014

VARA DE FAMÍLIA - Caso 1: Restituição de guarda de menor


Por Inês Regina Pereira.

A ré ingressou a sala de audiência furiosa, acompanhada de seu advogado. Era  ré da ação de restituição de guarda de uma criança já com 4 anos de idade. Era a avó, louca da vida porque a filha decidira recorrer à justiça para tirar-lhe a neta.

– Iiiiiiinnn DIG na! – berrava a anciã, toda senhora de seus direitos.

– Acalme-se, minha senhora – proferiu a juíza que, para acalmar as sessões, deixava um disco de música de elevador tocando no CD player de sua mesa, um pouco mais alta do que as outras, para deixar claro quem é que mandava ali.

– InDÍgna – continuou a velhota, nem se dando conta de quem a mandara calar-se.

Prestando atenção mais ao som clichê de seu disco de calmaria do que à ré, a juíza insistiu:

– Acalme-se, minha senhora. E sente-se.

Agora que ela tamborilava a mesa com as unhas compridas e esmaltadas em vermelho, o advogado da ré, considerando delicada a situação, apertou o braço de sua cliente, fê-la sentar-se e calar-se. Mas tão logo se encontrou acomodada, a velha não tardou a recomeçar, de enfiada:

– In DÍg na. In DÍg na. In DÍg na. In DÍg na. In DÍg na!

Do outro lado da mesa, a autora da ação, sua filha e mãe da menor em disputa, mantinha-se impassível, com seu advogado de olhos fechados, fingindo que se concentrava, mas que na verdade cochilava, pois viera de uma noitada daquelas.

– In DÍg na, Meritíssima – bateu as palmas das mãos na mesa e levantou-se a velha cheia de seus direitos. – Esse minha filha é indigna. Se enroscou com o namorado aos treze anos de idade, teve filho aos catorze, eu que que cuidei da menina, porque ela não sabia nem limpar fraudas e agora, que a menina já está até grandinha, quer leva-la de mim sem mais aquela. A mim é que não faz de besta, não, Meritíssima, a mim não.

A velha respirou fundo, fechou os olhos e sentou-se calmamente. A juíza, que nem tinha iniciado a audiência formalmente, aproveitou a deixa e falou, petelecando com a unha do indicador uma ponta de grafite que quebrara de sua lapiseira:

– Escrevente, anote aí o que a ré falou – e voltando-se  para a autora da ação, ergueu as sobrancelhas indagativamente.

A autora não se deu por desentendida:

– Quero minha filha, doutora...

– Meritíssima – corrigiu seu advogado, que acordara do cochilo  com um pequeno tremelique.

– Isso – corrigiu-se a autora –. Meritíssima, agora estou trabalhando, casei com meu namorado, estamos morando juntos e queremos nossa filha.

– Innnnnnn DIIIIIIIIGGGG nnnnaaaaa!

Era a mãe da autora, mostrando o punho cadavérico para a filha, que não piscou, nem se mexeu do lugar, situado exatamente à frente de sua mãe.

E nessa impassibilidade, proferiu de uma só vez:

– Quero minha filha de volta, porque é  minha filha, não dela, e porque meu irmão está molestando minha menina, todo mundo sabe.

A Meritíssima deu  uma petelecada tão violenta no grafite que este fui parar não sei onde. E saltando da cadeira exaltou-se:

– O seu filho anda fazendo o que com a sua neta?

– É, Meritíssima, mas não é culpa minha, quando a gente está longe, não sabe o que os filhos fazem.

A juíza ergueu-se da cadeira, foi até a janela, tomou um ar ou pensou no que fazer, e saiu-se com esta:

– E a senhora, dona autora, o que fez que não tomou providência, se sabia que seu irmão molestava sua filha?

– Processei os dois, Meritíssima, minha mãe e meu irmão.

– É verdade, dona ré?

– Não vou negar, Meritíssima...

– E...?

– Até agora nada, Meritíssima – respondeu a autora, torcendo a boca numa séria reprovação do nosso belo judiciário.

– Onde é que estava a senhora, dona ré, que permitiu uma calamidade dessas?

– Presa – respondeu ligeiro a ré.

A juíza tomava água, e foi nessa hora que ela engasgou, desandou a tossir e o copo virou sobre o processo.

– Preza! – despôs-se a Meritíssima – . Como assim, “Presa”! Presa por quê?

As palavras da Meritíssima saíam misturadas a jatos de água e à tosse compulsiva. E foi nessas condições que ela ouviu as palavras finais da ré:

– Rôbo!

– Rô-bo? Assim sem o “u” no meio da palavra?

Nessa hora a filha perdeu a timidez a finalizou:

– Minha mãe não passa de uma ladra, Meritíssima. Surrupiou até o “u” da coitada da palavra.

Na saída da audiência, cujo desfecho todos podem deduzir, tendo restado apenas a Merítissima e a escrevente  na sala, aquela disse a esta:

– Isso às vezes se parece com teatro...

Ao que respondeu, respeitosamente a escrevente:

– Teatro de comédia, Meritíssima. Teatro de comédia... E se me permite, data venia, teatro bufo!

A juíza espremeu as pálpebras, fechou a pasta do processo, entregou-a à escrevente e proferiu a sentença:

–  Caso encerrado.

2 comentários:

  1. Arnaldo B. Rosário Rosário (Via Facebook): Li e gostei da narrativa da causa forense, embora nunca tenha ido de ressaca em audiência. Rsrsrsrsrs

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  2. Lúcio Sanches (Via Facebook): Amigo(a) de Arnaldo B. Rosário Rosário
    Quem se enroscou e não sabia "limpar fraudas" foi a velhinha. kkkkk

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