quinta-feira, 29 de maio de 2014

SALA DE LEITURA – O diálogo entre os dois Manuéis: o Bandeira e o Carlos: a pobreza no Brasil tem cor

Manuel Bandeira, Luís Gama e Manuel Carlos.
Por Sirlene Barbosa.

A violência cotidiana, com negação de identidade racial, é reproduzida na escola, quando só é proposta a leitura da literatura do vencedor. Que país é este que o negro precisa querer ser outro para não sofrer? Uma educação que reproduz uma história única é omissa e cega. Por isso, a importância de propor o contato com a literatura negra, por exemplo.

É necessário que o estudante conheça e reflita sobre as diversas literaturas, inclusive aquela que tem como sujeito um negro que assume o discurso, deixando de ser o tema e passando a ser a primeira pessoa do discurso – aquele que fala.

Antonio Candido, a respeito da obra de Luís Gama, afirma que a literatura negra é aquela que trafega na
contramão. Ocorre que a escola é o lugar de desconstruir os discursos já postos, de refazer o já feito e de propor que muros sejam quebrados, de trafegar, então, na contramão.

Para tanto, exponho a experiência do diálogo ocorrido entre o poeta Manuel Bandeira e o diretor de novela da rede Globo, Manoel Carlos. Propus como leitura um poema de Bandeira e um trecho da novela “em família”, cuja direção é de Maneco (como é conhecido o diretor global).

Utilizei o poema Irene no céu:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
 – Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Após, apresentei um trecho da novela em que o núcleo foi formado por atores “famosos” e brancos, que juntos interpretavam uma família rica, tomando café da manhã. Do lado da mesa, em pé, estava uma senhora negra, trajando uniforme de empregada doméstica, à espera de qualquer pedido de algum dos patrões.

No poema de Bandeira, o negro é o tema, não assume o discurso. A negra é preta, boa e está sempre de bom humor; assim como a de Maneco, pois é preciso expor que uma das personagens brancas passa pela negra, aperta sua bochecha e lhe manda um beijinho. A negra sorri, submissa, mas feliz por ter sido notada, em pé, do lado da mesa, aguardando seus senhores se servirem. Caso essa personagem da novela, a branca, fosse escrever algo sobre a morte dessa empregada, ela teria como inspiração, com certeza, o poema de Bandeira.

Esta coluna não serve para criticar o poeta, ao contrário, Bandeira é Bandeira. Neste poema, porém, ele deu bandeira e minha função, na Sala de leitura, é a de auxiliar os estudantes a alcançarem a leitura plena dos enunciados que o rodeiam, ao perceberem quais discursos aparecem neste ou naquele texto e como eles “conversam”.

A discussão chegou até às propagandas de cerveja, quando uma estudante acrescentou o quanto é nítido que estas não são, somente, machistas, mas extremamente racistas. Observou que o negro, quando aparece, ocupa sempre a função de criado. Quer dizer: a mídia reitera a voz do vencedor e a escola deve contestar.

Viva a boa literatura!

Sirlene Barbosa é Mestra em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem – PUC-SP, professora de língua portuguesa de colégio particular e da Sala de Leitura da PMSP. Escreve todas as sextas-feiras a coluna Sala de leitura para o blog da editora Nova Alexandria.

DICA DE LEITURA
A escola é decisiva na formação da identidade de crianças e jovens. Neste livro de Solano Trindade, a identidade do brasileiro está em questão, a partir de poemas em que a justiça social e a luta contra a discriminação racial se oferecem ao leitor para declamação em voz alta. Leia a sinopse e, clicando nela, vá para o livro.




3 comentários:

  1. Ótima reflexão. Sinto tristeza toda vez que vejo atrizes talentosas como a Thalma de Freitas, por exemplo, que é uma puta atriz, cantora e, além de tudo, bonita fazendo papel de empregadinha numa novela.

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  2. Linda coluna, Sirlene! Vamos falar muito ainda sobre isso - ainda bem. Com o tempo e muito diálogo mudaremos a situação. Aprendo todos os dias com reflexões como a sua. Beijos, Susana

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  3. Li com imenso prazer a sua coluna, Sirlei. Sempre me incomodou o ostracismo a que foram relegados muitos artistas negros; entre os escritores, meu querido Cruz e Sousa (gosto do Simbolismo e assumo isso).
    Discussão importante e muito oportuna.
    Avante!
    Abraço
    Therezinha

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