Por Roniwalter Jatobá.
Numa fria tarde de
julho, a dona-de-casa Cleonice Menezes buscava o fraco calor de um sol ameno no
quintal todo acimentado de sua casa, na rua Espírito Santo do Dourado, no
Jardim Miragaia, em São Miguel Paulista. Por sobre os muros de blocos nus,
vinha o burburinho das gentes simples das moradias vizinhas, mas ela estava só.
Como quase todos os dias, aguardava o marido que cumpria o turno de guarda numa
metalúrgica em Guarulhos, sem hora de chegada.
Sem filhos, ia
completar 50 anos, mas o rosto triste aumentava a idade. À primeira vista,
qualquer um imaginava ter duas décadas a mais. A pele clara lembrava um
pergaminho antigo, amassado e desbotado pelo tempo. Os cabelos eram brancos
como flocos de algodão. Uma vez contou, começaram a clarear quando, numa noite,
sonhou que nunca mais veria a terra onde nasceu, e acordou pensando na morte.
–
Tão nova e tão acabada – dizia uma amiga, Lenita, quando perguntada sobre a
conterrânea que não se adaptara a São Paulo. – Está um caco, a coitada da Cléo.
Cléo nunca pensou em
viver numa cidade grande. Morava com a mãe viúva e seus irmãos mais velhos numa
casa espaçosa, bem em frente a única praça de Bananeiras, onde durante o dia
inteiro ciscavam galinhas e pastavam animais.
Cléo tinha sido bonita
na mocidade. Jovens bobões, caras pintadas de espinhas, segundo ela, davam
voltas e voltas para passarem em frente à sua janela, tentando ver suas mãos
brancas e ágeis tecendo longos bordados num bastidor. – Não gostava de prosa
com aquele grupo de homens sem futuro além do trabalho na terra – disse uma
vez. – Sonhava com um ser diferente, vindo de São Paulo, com emprego bem bom.
A vida de Cléo mudou
numa festa de Santa Efigênia, em setembro. Neste mês, todo ano, Arnaldo Lopes
deixava São Paulo e voltava a Bananeiras. Chegava de ônibus com dinheiro
pagando bebida, bem vestido. Entre um gole e outro de cerveja, dizia, sou
operário numa fábrica de química. Apontava coisas na prateleira dos bares,
dizia, ali tem o suor de minhas mãos. Falava que em São Paulo já arrumava a
vida, aqui nem onde cair morto. Pagava mais uma rodada de conhaque Castelo,
dizia, sou homem de muita sorte.
Um dia, visitou Cléo,
na casa gostavam dele. Trouxe uma lembrancinha. De terno fino chegava todo
educado, ela acompanhando o trejeito cerimonioso. Bebia café preparado por Cléo
em xicrinhas de porcelana, conversava prosa de São Paulo, se ele quisesse
durava noites. Tinha por volta dos trinta anos. Por que não fugir daquele mundo
que não tem nenhum futuro?, perguntava-se Cléo. O casamento foi rápido, as
férias dele estavam no fim.
Muitos anos depois, as
tardes solitárias eram reservadas para lembrar promessas há muito tempo por ele
esquecidas ou para reconstruir seus dias da infância. Às vezes, via-se bem
velhinha na frente de sua antiga casa, fazendo ainda longos e coloridos
bordados. Ou mesmo em demorados banhos no rio, no fim da tarde, no poço das
mulheres. Nua em pêlo, sentava numa pedra grande na beira do Aipim e ficava
balançando os pés na água tépida que descia em corredeiras.
Fogem as lembranças.
Agora, ela entra na casa fria e vazia. Na cozinha, olha as louças limpas, o
piso encerrado de vermelho, panelas sobre o fogão. Volta com um copo nas mãos,
para o quintal. Muitas vezes se embebedou para as tardes passarem com rapidez.
Muitas vezes, ela sabe disso, bebe além da conta.
Uma vez, pediu para
trabalhar fora, dar uma ajuda no sustento da casa.
– Nem pensar – indignou-se Arnaldo. – Nem
pensar.
Tenta divisar um horizonte perdido entre casas
e sobrados. Tudo pobre. Estava ali desde 1970 e nunca se acostumara. Quando
chegou naquele lugar as ruas de terra lembravam Bananeiras. Sem reboco ainda, a
casa minava água no quintal e o frio era cortante nos cômodos miúdos. Foi
arrumando as coisas. Mas, de vez quando, cobrava de Arnaldo uma promessa, sim,
uma promessa nunca cumprida.
– Um dia a gente vai – desculpava-se.
– Quando sobrar um dinheirinho.
Nunca sobrava. Já não acreditava
mais na antiga promessa de ir a um restaurante. Por isso, aos domingos, quando
se sentia só, muito só como se sente hoje, arrumava a mesa e fazia que entrava
num lugar fino até onde chegava a imaginação. Sentava-se à mesa da sala e pedia
a uma figura imaginária:
– Garçom, por favor, uma caipirinha.
Depois, o senhor traga um ensopado de carne com arroz e salada.
Em seguida, Cléo se levantava e
dirigia-se à cozinha. Preparava tudo com um perfeito apuro culinário. Aí, com exagerada
polidez, servia o apetitoso jantar para ela mesma: uma Cléo rejuvenescida, que
nunca mais, e para todo o sempre, iria acreditar na promessa de um homem.
Mais uma crônica triste de uma mulher triste de um sertão injusto.
ResponderExcluirJá não choro mais, sei que posso pegar no telefone e falar com você, ouvir sua voz feliz de um pai
e um avô, que além de tudo, sabe escrever contos!
Beijos