quinta-feira, 24 de abril de 2014

BRASIS, PORTUGAIS E ÁFRICAS - O conto popular e a chave do baú

Ilustração de Severino Ramos, para Contos e fábulas do Brasil, de Marco Haurélio.


Por Susana Ventura

A atenção dedicada pela escola e pela sociedade brasileira ao conto popular decaiu bastante nas últimas décadas. A perda, para o leitor, é equivalente àquela de perder as chaves de um baú que está no meio de sua casa e, por isso,  não poder olhar lá dentro.

O que há dentro do baú do conto popular são histórias sem autoria definida e que são o resultado da lenta fermentação que sempre cerca as narrativas coletivas, modificadas por seus contadores ao longo do tempo.
Parte da riqueza dos contos do baú está em sua filiação ao ‘maravilhoso’: nessas histórias  tudo pode acontecer e elas são universais por tratarem de temas comuns a todos os seres humanos.

Ítalo Calvino, quando trabalhou sobre contos italianos de origem popular na década de 1950, chegou à conclusão de que o conjunto dos contos constitui um catálogo do destino que pode caber a cada um de nós, seres humanos: do nascimento -  auspicioso ou difícil; do legado recebido – um castelo, um reino ou  um simples gato; das provas pelas quais temos que passar para crescer – enfrentar um gigante, buscar a água da vida para salvar um familiar doente; do encontro ou perda do verdadeiro amor e, finalmente, dos desafios da maturidade.

Dentro de um desenho aparentemente tão básico, estão os dramas todos da vida humana em todos os tempos, vivida em qualquer lugar: ser rico ou ser pobre; ser feio ou ser belo; buscar, encontrar e perder o amor; estar sujeito a encantamentos e bruxedos (ou seja, ter sua trajetória determinada por forças desconhecidas); ter de empreender grande, às vezes desmesurado esforço; metamorfosear-se ou ser metamorfoseado e poder retomar a vida depois disso; transformar-se enfim interna e externamente para encontrar-se verdadeiramente como ser humano maduro.

A chave está perdida, mas ainda está em casa, porque o conto popular é território de todos nós. Alguém se habilita a procurar pela chave e abrir o baú?

5 comentários:

  1. Susana, não perco sua coluna por nada deste mundo!
    É sempre um prazer navegar com você por esses mares de letras, símbolos, mistérios e maravilhas.
    Em várias partes do mundo o folclore parece estar sendo esquecido, como você disse, dentro de um baú trancado. É preciso resgatar esse tesouro de sabedoria popular.
    Se quiser empreender uma "cruzada", conte comigo!
    Grande abraço!!!

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    1. TT, muito obrigada por acompanhar a coluna. O problema a mim parece ser não jogar a criança fora junto com a água do banho. O uso que foi feito do folclore no século XX na maioria dos países sob regimes ditatoriais não justifica o desprezo ao folclore (de jeito nenhum!). Abraço, Susana

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  2. Não só os contos populares, mas os contos clássicos de reis e rainhas, de aladins e sultões, de princesas e príncipes encantados. A magia da infância mergulhou de ponta-cabeça nas mil e umas noites de trevas.
    Bjs.
    Tom

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    1. A infância mergulhou na tecnologia, e acabou despencando no mundo adulto cedo demais. Se o uso de aparelhos sofisticados é inevitável, por que não incentivar seu uso para leitura?
      Talvez seja uma saída.

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    2. Tom e TT,
      Que legal pensar sobre isso. Ao que me parece todo o Ocidente teve sua matriz de imaginário nos contos populares. Os 'clássicos' resultaram do aproveitamento realizado pela camada culta daquele arcabouço originário das camadas populares. Já o imaginário árabe chega por duas vias distintas e complementares aos nossos 'contos inesquecíveis': a) a longa permanência árabe na Península Ibérica traz covas encantadas, tesouros incríveis encantados; b) 'As mil e uma noites', que chega à Europa via edição de Galand em 1774 e que, curiosamente, fez na origem um caminho contrário: é a oralização de contos originalmente fixados pela escrita (a forma culta é relida pela cultura popular). Abraços aos dois amigos queridos,
      Susana

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