Por Susana Ventura.
Novamente estou em meio a príncipes, princesas e algumas fadas, continuando o sonho que já resultou nos dois livros editados em 2013 pela Volta e Meia.
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Claude Lorrain (about 1600-1682), Landscape with a Tower, 1635-40 |
Novamente estou em meio a príncipes, princesas e algumas fadas, continuando o sonho que já resultou nos dois livros editados em 2013 pela Volta e Meia.
Aqui estão reis e rainhas, pais e mães que, bons ou maus,
observam ou provocam a partida dos mais jovens rumo a desafios que podem
envolver a matança de dragões ou a travessia de rios perigosos, para, ao final,
chegarem ao objetivo: conseguir a água da vida, encontrar o verdadeiro amor ou
apanhar algumas penas de ogro...
Há alguns meses escrevi um pequeno post na minha página
facebook listando 5 motivos pessoais para continuar lendo e contando contos de
fada.Eram eles: o bem vence o mal; a justiça pode tardar, mas não falha;por
pior que seja seu começo de vida, tudo pode dar certo depois; a bondade e a
honestidade são sempre recompensadas; nem tudo é o que parece e uma coisa
aparentemente sem valor pode ser simplesmente a chave da felicidade.
Para minha surpresa foi muito grande o movimento de
comentários e a maior parte deles estava fundado na emoção e na experiência
pessoal. Continuo sempre apelando para Ítalo Calvino para falar no catálogo de
destinos humanos que aparece nesses contos, que mostram que o caminho da vida é
difícil, arriscado e surpreendente para todos: homens, mulheres e crianças,
ricos ou pobres, vivendo em qualquer época que seja.
Os contos - prefiro chamá-los de contos populares - oferecem
uma cartilha das experiências vitais, construída lentamente, desde tempos
remotos, pelas gerações de pobres e iletrados que os contaram e continuam a
contar nos mais diversos lugares do mundo. A partir do século XVII, mas com
muito mais força a partir do XIX, muita gente se dedicou a ouvi-los com atenção
e a recontá-los, com maior ou menor grau de fidelidade ao ‘original’.
Nestes anos de pesquisa na área, venho descobrindo cada vez
mais dessas pessoas que, em pesquisa e labor literário, trabalharam com as
fontes orais. Muitas delas eram mulheres e seus nomes são tão pouco ou nada
falados, que até nos esquecemos de pensar nisso.
Começo pelas preciosas dos salões franceses que levavam, em
sua maior parte, vidas muito menos glamurosas do que nos fazem pensar a
condição de nobres e os pomposos sobrenomes pelos quais ficaram conhecidas, Mlle.
de L’Heritier (sobrinha de Charles Perrault), Mme. D’Aulnoy, Mme. Le Prince de
Beaumont (a única de que nos lembramos com facilidade por A bela e a fera, o mais conhecido dos contos sobre o marido
animal).
Fuxicando as biografias dessas mulheres encontrei-as casadas
contra sua vontade, mandadas à prisão grávidas, vítimas de maus tratos. E
também protagonistas de tentativas de envenenar maridos e precursoras em
pesquisa antropológica. Uma variedade incrível de obras e vidas esquecidas sob
a pátina do tempo que, ao apagar o passado, apaga mais e melhor a existência,
resistência e trabalho das mulheres.
Outros nomes, diversas nacionalidades: Lucy Garnett, Rachel
Busk, Nanette Levesque, Laura Gonzenbach, Dominga Fuentes Norambuena, Bozena
Nemcova.
E novos traços biográficos: algumas eram analfabetas e
contaram suas histórias a mulheres e homens letrados (caso da chilena Dominga e
da francesa Nanette), outras eram folcloristas rigorosas e incansáveis, como
Bozena e Laura. Quase todas tiveram vida bem difícil, algumas morreram
precocemente, exauridas pelo trabalho e pelas más condições.
Paro a minha crônica e penso por alguns minutos, eclipsada
diante da perplexidade da constatação, de que muitas dessas mulheres de vida
dura passaram parte de seu tempo contando histórias de príncipes, princesas,
reis, rainhas, fadas, dragões e ogros com penas ou com várias cabeças.
Neste momento, só penso que nada disso pode ter sido em vão
e vou de volta para o trabalho, que resultará em livros que serão possivelmente
esquecidos para um dia, talvez, mas apenas talvez, serem lembrados.
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