segunda-feira, 9 de junho de 2014

BRINCANDO COM A LÍNGUA: NÃO MALTRATE O PORTUGUÊS - Quem sai da conversa vira assunto (2)

Eu adoro defenestrar! E você?
Por Therezinha Hernandes.

Os falares regionais, seus sotaques, suas construções próprias, seu vocabulário pitoresco, dão colorido à língua.

Se grandes e sensíveis artistas representaram o falar do povo em prosa, verso e música, quem somos nós para ter preconceito linguístico?

O que causa preocupação não é a fala das ruas, não são as expressões típicas, mas a redução do vocabulário e, na escrita, a supressão de letras e de sinais de pontuação.

A omissão de letras – relembrando que as letras representam, na escrita, os sons (fonemas) da língua- causa muitas vezes mudanças de significado (arrumo = eu arrumo = 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo arrumoU = ele/ela arrumou = 3.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo – veja-se, a esse respeito, a crônica da semana passada).

Os sinais de pontuação são necessários, na escrita, para dar ao leitor do texto uma indicação da entonação da frase (se é afirmativa, interrogativa, exclamativa), para indicar pausas dentro do período ou seu final. São indicativos necessários à leitura.

Mais grave é a paulatina redução do vocabulário. Há muito tempo já se fala do uso de “coisa”, “coisar” (!), “negócio”, “treco”, “troço” e, mais recentemente, “bagulho” (que gerou, na fala popular, “baguio/bagúi”, assim como “velho” gerou “véi” – na boa!), como substitutos de quaisquer palavras de que o emissor não se recorde no momento da fala.

Há textos saborosíssimos que tratam do vocabulário com leveza e humor: “Defenestração” (clique aqui) e “A Coisa” (clique aqui), de Luís Fernando Veríssimo, são dois exemplos ao mesmo tempo sérios e divertidos. Apesar do bom-humor, não deixam de conter um alerta para o desconhecimento do vernáculo e para o uso cada vez maior de palavras-muleta ou coringas. Estas, na mesma medida em que servem para tudo, não servem para nada, pois acabam restringindo a riqueza das possibilidades de comunicação, haja vista que os falantes da língua, ao deixarem de usar uma palavra, não mais entendem seu significado.
É essa a razão primária das dificuldades de leitura, que terminam servindo de mote para as “simplificações” ou “facilitações” de obras literárias.

George Orwell, ao descrever a “novilíngua” em seu livro “1984”, já alertava para os perigos da redução do vocabulário. Nesse romance, a novilíngua era imposta, ao contrário do que acontece nas línguas existentes, e seu objetivo era impedir o pensamento:

“[Syme para Winston:] Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples (...).

(...) Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?

(...) Não vês que o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimideia* literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. (...) Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre uma pausa menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivos nem desculpa para cometer uma crimideia. Mas no futuro não será preciso nem isso. (...) Nunca te ocorreu, Winston, que por volta de 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa conversa?

(...) Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo verdadeiro conhecimento da Anticlíngua* terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron... só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. (...)

Como será possível dizer “liberdade é escravidão”, se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos.” [ORWELL, George. 1984, 29.ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2005, páginas 52-55, tradução de Wilson Velloso.]

Não é nosso intuito, aqui, discorrer sobre o que surgiu primeiro, se o pensamento ou a linguagem, mas é inegável que a linguagem é a mais importante ferramenta para a formulação do pensamento e sua expressão, para a aquisição e transmissão de ideias.

Continua no próximo episódio...
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(*) Crimideia – No texto de George Orwell, o Partido tenta não apenas controlar as falas e as ações, mas também os pensamentos dos cidadãos, rotulando os pensamentos desaprovados com o termo “crime de pensamento” (thoughtcrime), ou, em novilíngua, “pensar criminoso” (crimethink), também traduzido como crimideia ou crimepensar.

(*) Anticlíngua – Designa, no romance, a “língua antiga”, em oposição à novilíngua. Trata-se do inglês, idioma em que foi escrita a obra.

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