quarta-feira, 14 de maio de 2014

Um tesouro da Costa Rica que o Brasil desconhece

Por Marco Haurélio.

Para quem leu as notas dos Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, o nome de Carmen Lyra não soa estranho. Autora de Los Cuntos de mi Tia Panchita, coletânea de contos tradicionais da Costa Rica, sua terra natal, Carmen Lyra (1887-1949) é praticamente desconhecida no Brasil. Que eu saiba, jamais houve tradução desta obra, publicada em 1936, para o português, exceção feita ao conto El tonto de las adivinanzas, incluído por Aurélio Buarque e Paulo Rónai num dos volumes de Mar de Histórias, talvez pelo fato de o protagonista ser o nosso João Grilo, celebrado na tradição popular, no cordel (por autores como o clássico João Ferreira de Lima e o contemporâneo Pedro Monteiro) e na peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Mas há muito mais tesouros na coletânea.  La negra y La rubia é a versão costarriquenha de Cinderela. El pájaro Dulce Encanto, com a história do rei cego e do príncipe que sai em busca de um remédio para o pai, revive o livro bíblico de Tobias, sem faltar sequer o motivo do morto agradecido que salva o protagonista da traição dos irmãos invejosos. Com início semelhante, mas desfecho diferente, La flor del Olivar traz o motivo do osso que canta (para revelar um crime), presente nos Contos dos  Grimm e em inúmeras outras coletâneas. Uvieta, a história do sujeito aparentemente simplório que presta favores a personagens sagrados, recebendo em troca o dom de fazer entrar em um saco tudo o que ordenar, é o nosso velho João Soldado, importado de Portugal, cujo nome não é indiferente a quem leu o clássico da literatura de cordel escrito por Antônio Teodoro dos Santos. E ainda temos La cucarachita Mandinga, um simpático conto de fórmula (acumulativo), que vem a ser a nossa Dona Baratinha (ou Carochinha) que desposa o desventurado João (ou Dom) Ratão (Ratón Pérez na história compilada por Carmen Lyra).


O personagem mais presente no livro é, no entanto, o tío Conejo (o amigo Coelho das nossas fábulas), sempre às voltas com inimigos mais fortes, como o tío Tigre, tío Coiote e tía Zorra (Raposa) e menos inteligentes.   É o mesmo Br’er Rabbit (irmão Coelho) dos Estados Unidos e das Bahamas, de origem africana, que inferniza a vida de seus tradicionais inimigos, o principal deles a raposa, e que protagoniza as aventuras compiladas e recontadas por Chandler Harris na obra Uncle Remus, publicada em 1881. Por que tío Conejo tiene las orejas tan largas, conto animal de feitio etiológico, assemelha-se aos contos O macaco que pediu sabedoria a Deus, que recolhi na Bahia e publiquei em Contos Folclóricos Brasileiros (Paulus, 2010) e O coelho que pediu o crescimento a Deus,  que integra a obra Contos e Fábulas do Brasil (Nova Alexandria, 2011).

E embora dialogue o tempo todo com nossas tradições mais caras, não temos dado a merecida atenção a esta e a outras obras produzidas por estes quadrantes, ocupados demais, talvez, com o outro lado do Oceano Atlântico.

Baiano de Riacho de Santana, Marco Haurélio é poeta popular, editor e folclorista. Em cordel, tem vários títulos editados, dentre os quais: Presepadas de Chicó e Astúcias de João GriloHistória da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados (Luzeiro). É autor, também, dos livros infantis A Lenda do Saci-Pererê e Traquinagens de João Grilo (Paulus); O Príncipe que Via defeito em Tudo (Acatu). Escreveu ainda Lendas do Folclore Capixaba (Nova Alexandria),As Babuchas de Abu Kasem (Conhecimento), A Megera Domada (recriado em cordel a partir do original de William Shakespeare) e O Conde de Monte Cristo(versão poética do romance de Alexandre Dumas), os dois últimos para a coleção Clássicos em Cordel, da Nova Alexandria, onde atuou como editor. Escreve toda quinta-feira para o blog da editora Nova Alexandria a coluna Cordel na rede.

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